Direitos fundamentais como saúde, educação, segurança e moradia digna estão sendo desrespeitados pelo poder público e pela empresa construtora da usina hidrelétrica de Jirau (nota MPF e MPE de Rondonia).
Isto é o que afirmam os Ministérios Públicos Federal e Estadual de Rondônia, que ingressaram na Justiça Federal com uma ação civil pública contra a União, o Ibama, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), consórcio ESBR (Energia Sustentável do Brasil S/A), prefeitura de Porto Velho e governo de Rondônia.A usina de Jirau, no rio Madeira, inundará o distrito de Mutum Paraná, distante 136 quilômetros da sede do município de Porto Velho (RO). A população urbana do distrito e os ribeirinhos que serão atingidos pela inundação provocada pela barragem terão que deixar o local.
Para reassentar as famílias, um complexo residencial chamado de Nova Mutum foi instalado a 17,2 quilômetros do distrito de Mutum Paraná. Quem não concordar em mudar para Nova Mutum deverá ser indenizado. Entretanto, há diversos problemas tanto para quem ficou na antiga vila quanto para quem foi para a nova.
Indenizações
Segundo os MPs, a situação dos moradores que permaneceram em Mutum Paraná é gravíssima. Em visita à localidade, constatou-se que a ESBR não tem dado informações necessárias sobre as indenizações das propriedades. A população reclama que os valores oferecidos pela empresa não condizem com o preço real de seus imóveis, motivo pelo qual muitas famílias ainda permanecem em suas casas, em situação indefinida.
A Licença de Instalação nº 621/2009, concedida pelo Ibama, estabeleceu que a ESBR deveria apresentar à população atingida um caderno de preços utilizado para fundamentar as indenizações, além de assistência técnica, jurídica e social. No distrito, os habitantes contam que nunca receberam este caderno de preços. Os MPs afirmam que até o contato dos moradores com a ESBR ficou dificultado porque “o escritório da empresa encontra-se, literalmente, com as portas fechadas para a população atingida”.
Sem luz e sem segurança
Em Mutum Paraná, a iluminação pública foi retirada, mas a taxa de contribuição continua a ser cobrada na conta de luz dos moradores. A ESBR e a Eletrobrás Distribuição Rondônia (antiga Centrais Elétricas de Rondônia – Ceron) negam que tenham retirado a iluminação pública e até o momento não se sabe quem o fez. Sem luz nas ruas à noite, os moradores reclamam da falta de segurança agravada pelo pouco policiamento – apenas dois policiais militares – e aumento da criminalidade, em especial, roubos e vandalismo.
Um morador afirmou ao MP que “a Energia Sustentável do Brasil está intimidando a população a aceitar as propostas oferecidas pelo consórcio ao dizer que vão retirar o gerador de energia, transferir o posto de saúde e a escola, além de retirar o policiamento”.
Saúde
A única unidade de saúde ainda existente em Mutum Paraná não pode receber pacientes porque os servidores que ali prestam serviços estão morando dentro da própria unidade de saúde, na enfermaria. Alguns desses servidores já possuem residências em Nova Mutum, mas, como o posto de saúde de nova vila ainda não foi concluído, os profissionais são obrigados a permanecerem dentro do próprio estabelecimento ambulatorial.
Mutum Paraná tem apenas uma ambulância, que está parada por falta de manutenção mecânica. Em busca de atendimento médico, a população tem que se deslocar até outro distrito – Jacy-Paraná – ou à sede de Porto Velho, por conta própria.
Segundo os MPs, a prefeitura de Porto Velho deveria fiscalizar e exigir da ESBR todas as condições necessárias ao atendimento adequado. “A omissão e ineficiência do serviço de saúde pública prestado aos moradores é um grave atentado ao direito à vida previsto na Constituição Federal”, afirmam.
Educação
A única escola mantida pela prefeitura foi desativada e transferida para Nova Mutum, obrigando crianças e adolescentes de Mutum Paraná a percorrerem diariamente 120 quilômetros (percurso de ida e volta). Como a estrada está sendo consertada e os ônibus escolares disponibilizados pela ESBR não têm cintos de segurança, alguns pais não estão permitindo que seus filhos freqüentem a escola.
Durante a visita de representantes do Ministério Público à Mutum Paraná, um grupo de alunos aguardou o ônibus escolar por mais de uma hora. Expostos ao sol de meio dia e cansados de esperar, acabaram voltando para suas casas. Os estudantes relataram que isto ocorre com freqüência.
Nova Mutum, antigos problemas
O projeto residencial denominado de Nova Mutum prevê a construção de 1,5 mil casas, destinadas em parte aos moradores de Mutum Paraná e em outra parte ao alojamento para funcionários da ESBR. Embora seja uma das poucas áreas do Estado de Rondônia que está tendo a oportunidade de ser planejada, a nova vila tem apresentado até o momento os mesmos problemas da antiga Mutum.
Segundo os MPs, pela “pressa” em realocar as famílias, o consórcio mudou diversas famílias para a Nova Mutum sem completar a infraestrutura necessária. A vila não tem serviços públicos básicos em funcionamento, como posto de saúde, áreas de lazer (praças), comércios, terminal rodoviário, posto de policiamento fixo e permanente.
Na localidade, a estrutura comercial ainda não está efetivamente construída. As famílias que sobreviviam de pequenos comércios (bares, na maioria) estão sendo obrigadas a improvisarem os estabelecimentos em suas próprias casas. Aliado a isto, o consumo de bebidas alcoólicas por moradores da vila e trabalhadores da usina, incluindo-se menores de idade, tem agravado a prostituição, inclusive infantil, naquele local.
Segundo os MPs, o terminal de ônibus prometido pela ESBR não está concluído e quem precisa do transporte coletivo tem que se deslocar até a BR-364, gerando riscos para idosos, portadores de necessidades especiais e crianças.
“Se há urgência na remoção das famílias da área a ser atingida pela construção da usina, o ônus deve recair sobre a construtora e nunca contra os afetados pelo empreendimento”, argumentam os MPs.
Irregularidades
O processo de loteamento de Nova Mutum ainda tem pendências e está em trâmite na Secretaria Municipal de Regularização Fundiária (Semur). Mesmo assim, a prefeitura de Porto Velho permitiu que a ESBR iniciasse as obras e manteve-se inerte ao processo de remanejamento das famílias atingidas pela usina de Jirau.
Outra irregularidade apontada pelos MPs é que a prefeitura de Porto Velho ainda não concedeu a autorização chamada de ‘Habite-se’, espécie de certidão que autoriza o imóvel recém-construído a ser ocupado e serve de garantia de que a construção seguiu corretamente tudo o que estava previsto no projeto aprovado.
Liminar
Os MPs pedem à Justiça Federal uma decisão liminar que obrigue os réus a cumprir suas obrigações, sob pena de multa diária de cem mil reais para cada item descumprido.
Os órgãos querem que o governo estadual aumente o número de policiais em Mutum Paraná, enquanto existirem moradores, e também na nova vila. O Ibama deverá fazer, em 30 dias, uma vistoria nas duas localidades a fim de verificar o cumprimento das condicionantes da Licença de Instalação (LI) da usina de Jirau, principalmente quanto aos programas de recuperação de áreas degradadas, de remanejamento da população atingida e do programa de compensação social, sob pena de suspensão da LI, devendo também apresentar um relatório circunstanciado sobre a situação apurada no prazo de 30 dias.
A prefeitura de Porto Velho terá que normalizar o atendimento no posto de saúde de Mutum Paraná e exigir da ESBR a construção e o funcionamento da unidade na Nova Mutum, além de colocar ambulâncias para as duas vilas, sem que haja prejuízo ao atendimento em Porto Velho e seus distritos. O prazo também é de 30 dias.
O município também deverá reativar a escola e os serviços municipais em Mutum Paraná, até que todas as famílias sejam remanejadas. Havendo impossibilidade de reativação da escola, a prefeitura deve providenciar ônibus escolares suficientes e com todos os equipamentos de proteção estabelecidos pelo Código de Trânsito Brasileiro. A prefeitura também deverá adotar as medidas legais quanto às irregularidades urbanísticas existentes na Nova Mutum, inclusive com embargos e paralisação das obras.
Os MPs também pedem, em caráter liminar, que a Justiça Federal determine a ESBR não realoque mais nenhuma família enquanto não forem concluídas as obras de infraestrutura, devendo aplicar e respeitar integralmente o plano urbanístico apresentado às autoridades públicas da União, do Estado de Rondônia e do Município de Porto Velho.
A empresa ESBR também deve disponibilizar e manter postos de atendimento social aos moradores, prestando informações sobre o processo de remanejamento, fornecer toda a documentação pertinente ao empreendimento, em especial, cadernos de avaliação de preços, laudos de avaliações de cada imóvel, com valores individualizados referente a cada item, metodologia empregada, coordenadas das áreas que serão inundadas e APP’s remanescentes, bem como quaisquer outros documentos.
Os MPs querem também que a União e a Aneel sejam obrigadas a fiscalizar as cláusulas do contrato de concessão da usina de Jirau. Assinaram a ação civil pública o procurador da República Ercias Rodrigues e os promotores de Justiça Edna Capeli, Aidee Torquato, Aluildo Leite, Emília Oiye, Pedro Wagner Pereira Júnior e Tânia Santiago.
Fonte: MPF/RO e MP/RO