Data: 11 de dezembro de 2010
Veículo: IHU – Instituto Humanitas Unisinos
Belo Monte talvez seja um dos maiores “pepinos” que a presidente eleita vai ter que enfrentar já no início da sua gestão. As irregularidades seguem desde quando a obra foi anunciada, no governo FHC, que afimoru publicamente a obra sem que o projeto existisse formalmente, e continuaram durante o governo Lula. “Uma das coisas que estão tentando fazer neste exato momento no governo federal é que estão anunciando que vão liberar uma tal de ‘licença de instalação fragmentada‘. Essa licença não existe na legislação ambiental brasileira. Ou você concede uma licença de instalação para que a obra possa se instalar, ou você não concede”, explicou o procurador Felício Pontes Júnior durante a entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line.
Felício Pontes Júnior é procurador da República junto ao Ministério Público Federal em Belém. Possui atuação nas áreas indígena, ambiental e ribeirinha, e é mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor faz parte do Ministério Público Federal. Como é estar nessa luta fazendo parte de um órgão público?
Felício Pontes Júnior – Acho que o Brasil tem uma experiência extraordinária com o Ministério Público. Uma coisa que salta aos olhos dos outros países é ver a independência dessa instituição, de como pode ser uma instituição ao mesmo tempo atrelada ao poder público, paga pelo poder público, e que consegue atuar independentemente dele. Acho que essa foi uma grande conquista da sociedade brasileira na Constituição de 1988.
Nós conseguimos ter, como Procuradores da República ou Promotores de Justiça, uma atuação independente. O Procurador da República age na defesa da sociedade, não na defesa do governo. No momento em que o Ministério Público entra com uma ação contra alguém que cometeu um crime ambiental, está automaticamente defendendo a sociedade daquele que cometeu o crime.
O governo deveria dar o exemplo, mas nem sempre é assim, e, então, quando comete o ilícito, ele é processado pelo Ministério Público para que aquela ação possa ser corrigida, já que afetará diretamente o direito das populações. E aqui na Amazônia o direito que se afeta é o da população tradicional, e aí eu englobo tanto os quilombolas quanto as comunidades ribeirinhas e indígenas também. Essa pessoas precisam ser respeitadas pelo governo.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas que os processos jurídicos sobre Belo Monte têm?
Felício Pontes Júnior – Nós temos nove ações judiciais contra o governo federal em relação a Belo Monte produzidas ao longo de dez anos de trabalho e investigação. Isso mostra que a cada etapa, desde a primeira até a última, no processo de licenciamento, o governo federal vem violando algum direito, seja ambiental, seja das populações indígenas. A Constituição manda que o Congresso Nacional ouça as comunidades indígenas atingidas antes de autorizar obras. Considero esse o problema mais grave do processo. Isso porque, em alguns casos, há a necessidade de remoção dessas pessoas. E não é nem o presidente da República, é o Congresso Nacional que tem que se reunir e decidir entre os prós e os contras de uma atuação tão vigorosa como o desvio de um rio, de uma comunidade indígena, por exemplo, que vai afetar de modo extremamente forte aquela comunidade.
Isso não foi feito pelo governo federal. A impressão é de que o governo não quer que esse debate sobre Belo Monte venha a público. Essa é, talvez, uma das mais fechadas caixas-pretas do governo federal sobre o setor elétrico brasileiro. Não é muito discutido com a sociedade o plano de expansão elétrica, como irá acontecer, que fontes alternativas, que tipos de fontes de energia nós vamos ter no Brasil. E não foi só a comunidade indígena que não foi ouvida, mas toda a comunidade científica. Há alguma coisa de podre no ar que não pode ser debatida com a sociedade brasileira, ainda que se trate da obra mais cara do Brasil hoje.
Outro grave problema em Belo Monte é o volume de energia que a hidrelétrica vai gerar. O rio Xingu tem uma sazonalidade, uma vazão de cheia para seca muito grande. Ele passa seis meses do ano enchendo e seis meses do ano esvaziando. O rio sai de mil metros cúbicos de água por segundo nessa época agora que estamos vivendo do ano, para daqui a seis meses mais ou menos estar com trinta mil metros cúbicos de água por segundo. O que isso quer dizer na prática? Quer dizer que se nós tivéssemos trinta mil metros cúbicos de água por segundo passando o ano todo, a hidrelétrica ia estar funcionando o ano todo. Como não temos isso, os dados técnicos mostram que durante quatro meses do ano não haverá água para gerar nenhum quilowatt de energia. Nem para acender uma lâmpada.
IHU On-Line – Você diz que há nove representações no Ministério Público Federal que apontam irregularidades no projeto de Belo Monte. O que impede que essas representações sejam levadas em frente e o projeto seja suspenso?
Felício Pontes Júnior – O problema é que essas nove ações judiciais não estão parando Belo Monte. É exatamente pela demora da Justiça de se pronunciar sobre os casos. Muitos desses casos já foram julgados em primeira instância, e quando conseguimos uma liminar ou mesmo uma decisão favorável de sentença, estas são suspensas por algum desembargador do Tribunal Regional Federal em Brasília ou até mesmo por um Ministro do Supremo Tribunal Federal.
O processo judicial brasileiro, que considero kafkiano, não tem lógica nenhuma. No Brasil, você tem, às vezes, para uma mesma decisão, quatro recursos, quatro instâncias diferentes, que vão decidir sobre o mesmo caso. Isso não é lógico em lugar nenhum. Assim, essa estrutura judicial brasileira faz com que os processos não cheguem ao fim. E você não precisa ser um grande advogado pra fazer isso; basta não perder prazo para recorrer, e recorrer de tudo. Acho que nós somos hoje, em Belo Monte, vítimas também dessa demora da Justiça que acaba beneficiando sempre o infrator, nunca beneficia quem tem direito.
IHU On-Line – É o processo decisório ou o processo de licenciamento que apresenta maiores problemas em relação às barragens de Belo Monte?
Felício Pontes Júnior – Os dois são extremamente problemáticos. O processo de licenciamento teve uma série de problemas desde o seu início. No início, por exemplo, o governo federal queria licenciar na Secretaria Estadual do Meio Ambiente o Xingu como um rio federal. Então, teria que um órgão federal, que é o Ibama, ser o competente para licenciar. Chega até o cúmulo de nós termos, hoje, a situação de que o estudo de impacto ambiental foi entregue por três das maiores construtoras do Brasil, a Norberto Odebrecht, a Andrade Gutierrez e Camargo Correa. Foram elas que fizeram o estudo ambiental de uma forma extremamente ilícita, porque não houve licitação para contratação dessas firmas, e não levaram todos os documentos que deveriam ser entregues para que o Ibama pudesse autorizar, licenciar ou conceder licença prévia dessa obra.
Além disso, sendo uma obra pública, isso significa que nós brasileiros que pagamos nossos impostos no quilo de café que compramos, vamos pagar por essa obra, e nós vamos pagar por uma obra que não vai dar nem um terço da energia que está sendo propagada. E mais: agora o BNDES diz que vai financiar e que vai precisar alterar sua legislação. Se todos os cientistasque estão estudando Belo Monte estiverem corretos, dizendo que não haverá energia, todo esse dinheiro, que é muito dinheiro, repito: é a obra mais cara do Brasil, vai ser paga nós brasileiros sem que isso traga o resultado que foi propagado pelo governo federal.
IHU On-Line – O que é uma licença ambiental fragmentada, que está sendo anunciada como parte do projeto de Belo Monte? Quais as possíveis consequências dessa fragmentalização de licenças?
Felício Pontes Júnior – Uma das coisas que estão tentando fazer neste exato momento no governo federal é que estão anunciando a liberalização de uma “licença de instalação fragmentada”. Essa licença não existe na legislação ambiental brasileira. Ou você concede uma licença de instalação para que a obra possa se instalar, ou você não concede. O problema é que na licença prévia, que vem antes da licença de instalação, o Ibama concedeu sob pressão do governo, várias cabeças caíram porque se recusavam a dar essas licenças. No fim, essa licença sai com 40 condicionantes. Você só pode ter a licença de instalação, que é a fase seguinte e onde estamos nesse momento, se as 40 condicionantes forem cumpridas. Como o governo não cumpriu quase nenhuma dessas condicionantes, ele está querendo que seja concedido pelo Ibama uma licença apenas para o canteiro da obra. Ora, mas o canteiro já é a obra em si!
Então, creio que o governo está jogando, nesse caso, com a teoria do fato consumado, o que é nefasto para todos nós. O governo está, portanto, tentando fazer com que a obra saia de qualquer maneira, o mais rápido possível, antes que as nove ações que estão sendo julgadas pelo MPF cheguem ao fim.
IHU On-Line – Qual a presença da violência no entorno dessas obras projetadas para o norte do país?
Felício Pontes Júnior – Já está sendo sentido isso. Quando a Irmã Dorothy estava viva, houve o anúncio pelo governo FHC sobre Belo Monte. Esse anúncio apontou que o município de Anapu vai triplicar, em menos de um ano, sua população. Muitas dessas pessoas saíram do Maranhão, Piauí e Ceará e chegaram lá e viram que não tinha nenhuma obra. Nem o projeto havia; apenas um anúncio por parte do governo federal de forma irresponsável. A Irmã Dorothy recolheu muitas dessas famílias nos assentamentos públicos e foi num desses espaços que a assassinaram.
Ela chegava primeiro no local, colocava os assentados quando nem haviam estradas, e depois de ter desenvolvido a área, quando o projeto já estava em andamento, alguns grilheiros chegavam lá dizendo que eram donos e apresentavam papeis falsos. Como ela nem os assentados saíram das terras, os grileiros acharam de matá-la.
Então, a violência que foi cometida contra Irmã Dorothy já tem uma ligação direta com Belo Monte. Hoje, a população de Altamira, segundo o último Censo, é de 94 mil habitantes. Isso mostra um aumento considerável na população nos últimos anos, exatamente em função do anúncio dessa hidrelétrica na região do Xingu. Não há área disponível para essas pessoas. Além disso, o governo espera que mais cem mil pessoas cheguem. Isso significa que será preciso dobrar o valor dos equipamentos urbanos para que essas pessoas possam chegar. Como nenhum dos equipamentos foi duplicado, nem vai poder ser num curto espaço de tempo, teremos um caos social extremamente alto em Altamira.
Se essa licença fragmentada de instalação for concedida, nós vamos ter um fluxo migratório impossível de ser agregado por Altamira. E sabe qual o máximo de empregos que podem ser gerados pelas obras da barragem? 20 mil empregos e apenas no terceiro ano da obra. Esse é o ápice. Considerando isso, teremos 80 mil pessoas desabrigadas.
IHU On-Line – E para onde vão essas pessoas?
Felício Pontes Júnior – Vão para a área rural do município e inchar a periferia da cidade de Altamira. Irremediavelmente, a história vai se repetir na Amazônia com os grandes projetos, os quais irão gerar conflitos sociais extremamente altos. Isso tudo numa região que é a maior grilada da Amazônia. Com a instalação dessa hidrelétrica lá, sem que haja uma preparação da infraestrutura urbano-social, teremos o caos em Altamira. Essa cidade estará nas manchetes que anunciarão as piores manchetes que se pode fazer contra o ser humano.
IHU On-Line – E o senhor acha que a licença vai ser concedida?
Felício Pontes Júnior – Eu acredito na Justiça. Acredito que o Ibama sob pressão do governo federal vai conceder. Mas na Justiça vamos conseguir barrar essa obra.
IHU On-Line – E quanto aos prazos? Quanto tempo pode levar para a Justiça impedir que a obra seja levada adiante?
Felício Pontes Júnior – Desses nove, pelo menos quatro ações podem ser decididas a qualquer momento. Duas estão correndo em Brasília e duas em Belém. Ainda confio que até o final do ano, embora o recesso comece no dia 17, teremos um dessas decisões, no mais tardar em janeiro alguma dessas decisões deverá ser tomada pela Justiça.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz das audiências públicas sobre Belo Monte?
Felício Pontes Júnior – As audiências públicas foram apenas mera formalidade. A forma como as audiências públicas são conduzidas hoje em qualquer procedimento de licenciamento ambiental no Brasil são formalidades apenas porque os técnicos não levam em consideração aquilo que está sendo dito pela população e o que está sendo provado pelos cientistas e professores das universidades que sempre estão presentes nessas reuniões.
Acredito que precisamos de um novo modelo que faça com que o poder público leve em consideração o que está sendo dito. No caso de Belo Monte, houve um painel de 39 especialistas do Brasil inteiro, inclusive de universidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Eles questionaram todo o projeto de Belo Monte e não apenas seus impactos. E nós ficamos surpresos quando vimos que a licença prévia foi concedida sem que nenhum desses questionamentos tenham sido levados em consideração. Para que serve as audiências públicas no Brasil, então? Apenas para tentar justificar que o projeto foi debatido pela população. Se o licenciador não leva em consideração, então foi apenas um momento de botar dinheiro público fora. Portanto, a legislação precisa ser reformulada e essas audiências públicas precisam ter peso decisivo.