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Dom Erwin Krautler: “Eu nunca pensei que o Lula pudesse mentir na minha cara” – Parte 3

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– O senhor é uma das vozes mais críticas contra Belo Monte. Por que o senhor não quer uma hidrelétrica no Xingu?
Dom Erwin –
Altamira sofreu o primeiro “choque” com a construção da Transamazônica. Eu me lembro de quando chegou aqui o presidente Médici (Emílio Garrastazu Médici, general que foi presidente do Brasil no período mais violento da ditadura militar, de 1969 a 1974). Ele deu início às obras, no lugar chamado “Pau do Presidente”. Você foi lá ver (o “pau do Presidente”)?

– Ainda não…
Dom Erwin –
Não perde nada. Só ficou aquele tronco da castanheira, a placa roubaram… Eliane, você naturalmente sabe que aqui se usa essa expressão “pau do presidente” com certa malícia!

– Posso imaginar… O senhor presenciou a derrubada da castanheira?
Dom Erwin –
Sim. Todo o pessoal delirando no palanque… delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração… Como é que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrooondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: “O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde”. E havia uma placa em uma das três colunas feias, bem feias que fizeram: “Depois de XX meses o presidente voltará para inaugurar, dando mais um passo para integrar…”. Era essa a época: “Integrar para não entregar” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”… Coisas desse tipo. Eu vi.

– Isso tudo o senhor estava assistindo de onde?
Dom Erwin –
No meio do povo que foi lá ver o presidente. Tinha dois bispos, vestidos com trajes episcopais, que pensavam que seriam chamados a subir no palanque: o bispo daqui, que era meu tio, e o bispo de Marabá. Não os chamaram lá para cima porque o de Marabá não era amigo dos militares. Ele tinha denunciado um monte de coisas. Naquele tempo era a guerrilha do Araguaia, então não chamaram os bispos para subir no palanque… Eu pensei: “Bem feito!”. Mas eu não tinha coragem de dar minha opinião, porque era menino recém-chegado. Mas os bispos também achavam que o progresso estava chegando… Altamira era uma cidade esquecida, no meio da mata.

– É muito simbólico derrubar uma castanheira, uma árvore gigante, como símbolo da chegada do progresso e do desenvolvimento, não?
Dom Erwin –
Depois se falava em “benefício”. Tem que “beneficiar” a terra para você encaminhar, por exemplo, um crédito bancário. Então tinha que derrubar.

– O que era Altamira antes da Transamazônica?
Dom Erwin –
Era uma cidadezinha esquecida. De dia faltava água, de noite faltava luz. Tinha um motor da prefeitura que tinha funcionado pela última vez nos 15 anos da filha do prefeito. Nos anos 60 queriam fazer uma picada para Santarém para ligá-la ao mundo e mataram não sei quantos índios. Depois veio a Transamazônica. Um compadre meu, que trabalhava como telegrafista naquele tempo, disse: “Olha, compadre, agora vem o progresso. Tinha um telegrama de um tal de Incra dizendo que vão construir uma estrada. Estão dizendo que vai chover dinheiro”.

– Um discurso muito parecido com o de agora, não? Vai “chover dinheiro”, o progresso vai chegar…
Dom Erwin –
Essa é a ideia: o “progresso” vai desbravar toda essa região. Então, de fato, começou no quilômetro 5, com a derrubada daquela árvore, onde tudo era mato. E hoje você vê tudo descampado. O traçado da Transamazônica já foi feito assim porque se pensou em futuras hidrelétricas, como Belo Monte. Nos anos 70 já fizeram toda a pesquisa. Em 1950, Altamira tinha 1.200 habitantes. Em 1960, 2.800. E depois, acho que de 1965 em diante, uns 4 mil, 5 mil. Mas depois veio o boom… o pessoal veio do Nordeste, primeiro, depois do Sul. Aí Altamira ganhou outras feições. E com a Transamazônica, em 1975, se falava numa possível hidrelétrica, mas era uma coisa muito distante. Nos anos 80, então, a coisa já pegou mais vulto, até que, em fevereiro de 1989, vieram os índios…

– O senhor estava presente no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989? (Na ocasião, Tuíra, índia kayapó, encostou a lâmina do seu facão no rosto de Antonio Carlos Muniz Lopes, da Eletronorte, para expressar sua indignação contra o projeto de Belo Monte, naquela época chamado de Kararaô. A foto da cena correu o mundo).
Dom Erwin –
Não. Eu estava na Suíça… Os índios vieram falar comigo. Queriam marcar o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Então eu encontrei, naquele tempo, não vou dizer o primeiro escalão, mas o segundo escalão do Banco Mundial, em Berna. E me avisaram: o Banco Mundial só vai fornecer o crédito (para a obra) se a cláusula indígena e a cláusula ambiental forem observadas e cumpridas. Isso, para mim, foi o sinal de arquivamento. Pensei: esse perigo já passou. Enquanto eu estava lá, ocorreu o episódio com a Tuíra, aqui. Eu conheço muito bem esse Antonio Carlos Muniz…

– Como o senhor o conheceu?
Dom Erwin –
Ele me convidou, quando estive em Brasília, nos anos 90, para o gabinete dele, e me mostrou todas as coisas. Ele queria cativar-me, conquistar-me para o projeto. Fui muito bem tratado, sabia? Mas quando a gente é tratado tão bem, com beijinho etc, é preciso ficar cismado. Quando é assim, tem boi na linha. Não é porque te querem bem, mas eles querem te preparar, querem aproveitar que você está sozinho e te convencer.

– Brasília o assusta, nesse sentido?
Dom Erwin –
Sim, me assusta. Meu Deus! Estive duas vezes com o Lula, também, e com outras pessoas. Eu tinha contatos bons, gente boa em Brasília que estava no nosso lado. Agora, ultimamente, estamos num certo isolamento. Porque aquele povo que antigamente lutava conosco, que estava do nosso lado, que defendia a mesma coisa, que lutou pela mesma causa, agora defende o contrário.

– Quando o Lula foi eleito, o movimento social da Amazônia tinha certeza de que Belo Monte estava definitivamente sepultada. Como foram seus encontros com o Lula?
Dom Erwin –
A primeira vez foi em 19 de março de 2009. Fui com um advogado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), amigo meu de longa data, e com um assessor político do CIMI, que agora foi conquistado para ser membro do gabinete da presidente. Fiquei com o Lula uns 20 minutos, talvez meia-hora. Apresentei as nossas angústias e as nossas preocupações, e ele foi o primeiro a insistir que houvesse um diálogo construtivo, que se avaliasse os prós e os contras. Eu disse: “Olha, eu queria que o senhor ouvisse o povo”. Ele perguntou: “Que povo?”. Eu disse: “O povo do Xingu, os representantes do povo do Xingu”. Ele disse (Dom Erwin imita a voz e o jeito de Lula): “Manda chamar!”. Acertamos então uma segunda visita. Lembro que, ao final desse primeiro encontro, eu disse: “Lembranças para Marisa, sua esposa”. O Lula ficou até assustado, porque não estava acostumado a receber saudações para sua esposa. Quando alguém se encontra com o presidente, não lembra que ele é casado. Senti o Lula como alguém muito amigo, simpático.

– Foi a primeira vez que o senhor o viu?
Dom Erwin –
Não, já tinha visto em campanha.

– Como o senhor percebeu o Lula?
Dom Erwin –
Ele era aquele trator, falava pra cá e pra lá. A gente via que ele estava em campanha, que a gente era uma peça lá daquela campanha. Dá a mão, tira foto… Mas, em 2009, foi um encontro… muito amistoso. Eu ainda esperava que ele fosse se convencer de que não era por aí. Até escrevi: “Graças a Deus, Lula entendeu”. E nós marcamos outra audiência, em 22 de julho do mesmo ano. Foi muito interessante. Levamos dois índios, dois ribeirinhos, a Antonia Melo (uma das principais lideranças do Xingu), dois procuradores da República e o professor Célio Bermann (do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP). Mas o Gilberto Carvalho (chefe de gabinete do então presidente Lula, hoje ministro da Secretaria Geral da Presidência da República no governo Dilma) queria que só eu falasse em nome de todos. Do outro lado havia o setor energético do governo, todos os figurões… Nós, de um lado, humiiildes, coitados, nos sentindo como um peixe fora d’água e, do lado de lá, essa gente que mandava e até hoje está mandando… Mas a gente tinha segurança daquilo que nós queríamos. E, quando o Lula chegou, ele sentou-se ao meu lado. Eu disse: “Presidente, o senhor vai ter que ouvir esse povo. Esse povo veio de longe, quer falar com o senhor. Não pode pegar só dois que representem os outros, porque eles vão sair com uma frustração que não tem tamanho!”. O Lula então disse (e Dom Erwin imita o vozeirão do então presidente): “Deixa comigo! Vamos fazer!”. Então, de fato, ele deu a palavra a todos.

– O que eles disseram?
Dom Erwin –
O povo falou de sua angústia, de que não podiam deixar a sua terra. Depois, os procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Célio Bermann colocou então os pontos técnicos e financeiros que tornavam o projeto inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou para a turma dele, dizendo: “Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o professor”. Mas esta resposta não veio até hoje.

– O senhor acha que o Lula estava sendo sincero ou era teatro político?
Dom Erwin –
Era teatro, jogo político… Depois ele me segurou no braço e disse (imitando a voz): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa dívida, até hoje, não foi sanada. Tem muita gente perambulando por aí que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada para eles. Terceiro: Nós não vamos repetir (a hidrelétrica de) Balbina. Balbina é um monumento à insanidade. E quarto: o projeto só vai sair se for vantagem para todos”.

– O Lula disse isso?
Dom Erwin –
Disse! Textualmente, sentado ao meu lado, me segurando nesse braço (mostra o braço esquerdo). Eu pensei, bom… o presidente não iria falar isso se não fosse verdade. Mas, as mulheres têm mais sensibilidade, têm mais intuição. A comadre Antonia Melo não quis nem tirar retrato. Os outros todos bateram foto com o Lula. Eu fiquei até estranhando, mas ela sentiu, naquele tempo, que era apenas um show. Engraçado, as mulheres, neste ponto, têm uma intuição que os homens não têm. Eu pensei: “Não, o Lula não vai mentir na minha cara!”. E ainda por cima segurando no meu braço… (Imita novamente a voz de Lula): “Dom Erwiiiin….”.

– O senhor imita bem a voz do Lula… O senhor saiu aliviado?
Dom Erwin –
Aliviado não vou dizer, mas muito esperançoso, porque no final ele ainda disse: “O diálogo vai continuar, nós vamos nos encontrar de novo”. E aí, de repente, eu me dei conta de que não houve diálogo nenhum. Porque ele falou, mas não perguntou quais eram as nossas ideias, não perguntou o que nós achávamos, nem como pensávamos que seria possível resolver certos impasses.

– Como foi o clima dessa reunião?
Dom Erwin –
A primeira parte da audiência com o Lula foi sem ele. Só com o setor energético, Funai e outras instâncias do governo. Esse pessoal do governo xingou os procuradores da República, dizendo que eles não entendiam nada, que não era do ramo deles, que estavam se metendo em assunto que não dizia respeito a eles. E até foram alteando a voz, viu? Fiquei até assustado, pensando que a educação tinha passado muito longe daqueles senhores. Lembrei-me de que quem grita revela que não tem argumentos para convencer o interlocutor. No fundo, essa turma tinha que admitir que a razão e o bom senso estavam do nosso lado. Assim, optaram por atitudes autoritárias e de prepotência, querendo nos intimidar, dizendo que não entendíamos nada do assunto. Do nosso lado, ninguém perdeu em nenhum momento a compostura. Não respondemos aos gritos. Os berros saíram da goela deles. Neste exato momento, o Lula entrou “em cena”, perguntando: “Vocês estão vivos?”. Porque era um berreiro, não era diálogo. A entrada do Lula na sala parecia uma ducha de água fria em cima da turma dele. De repente, eles se recompuseram. Achei ridículo! Pareciam meninos briguentos na sala de aula que, quando o professor entra de repente, ficam com medo de algum castigo ou de nota baixa e então se ajeitam. Aí o Lula me cumprimentou efusivamente, como se fôssemos amigos de longa data, “companheiros” de luta desde a primeira hora. E, não nego, me senti bem à vontade e agradeci a ele por ter nos recebido, elogiando esse gesto aberto de busca de “diálogo”. Pois naquele momento acreditei realmente no diálogo.

– E não foi?
Dom Erwin –
Só caí na real quando, em outubro do mesmo ano, passei uma semana em Brasília esperando a continuação desse diálogo. A audiência foi adiada de uma manhã para a tarde, de um dia para o outro, até que, finalmente, recebi um telefonema na sexta-feira à noite em que Gilberto Carvalho me pedia desculpas, dizendo que não era mais possível ser recebido pelo presidente, pois ele tinha precisado viajar para a Venezuela. Essa viagem certamente já estava programada no início daquela semana e servia de pretexto para evitar o constrangimento de ser obrigado a me dizer que o presidente e seu staff não estavam mais interessados na continuação do “diálogo”. Em 23 de setembro de 2009 eu tinha escrito uma carta ao Lula, tratando-o ainda de “meu presidente”. Nunca recebi resposta.

– O senhor tinha acreditado na promessa de diálogo feita pelo Lula?
Dom Erwin –
Eu acreditei. Havíamos dado um passo importante, porque havíamos chegado até lá. E agora, aquele setor do governo, embora tenha gritado antes, teria que dar resposta por ordem do presidente. Mas nunca houve diálogo. Naquele encontro nós mostramos o que ia acontecer, o absurdo dessa obra em todos os sentidos, inclusive em sua viabilidade financeira. E ninguém nunca nos respondeu nos provando que estávamos errados. O Célio Bermann falou, e eu entreguei para o Lula um resumo da posição do Oswaldo Sevá Filho (professor e pesquisador de Engenharia Mecânica da Unicamp), que não pôde nos acompanhar porque estava doente, assim como a posição de outros grandes professores e pesquisadores dessa área no Brasil. E todos mostravam a inviabilidade de Belo Monte, assim como a destruição que ela vai provocar. Por que esse povo não recebeu uma resposta?

– Por quê?
Dom Erwin –
Porque não há resposta. Os argumentos são imbatíveis. Tem que desmontar a opinião das maiores cabeças dessa área no Brasil, tem que ter argumentos fundamentados na realidade, mas o governo não tem. E, se não tem, precisaria assumir: “Nós temos que fazer isso. É uma decisão política, e não técnica”. Se a decisão fosse técnica, Belo Monte jamais seria feita. Por isso, o diálogo foi abortado desde o início. Aquilo que Lula fez era só um show para agradar ao bispo.

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