– No caso de Belo Monte, o governo defende que os índios não serão atingidos. Mas muitos ambientalistas e pesquisadores refutam essa afirmação, mostrando que não é possível barrar um rio sem que isso afete as comunidades que vivem em torno dele. Como o senhor vê essa questão?
Dom Erwin – Se o projeto de Belo Monte se concretizar, esses povos que moram na Volta Grande do Xingu serão atingidos. O governo nega, porque, para o governo, atingir o povo indígena é só quando se inunda, alaga a aldeia. A inundação, de fato, não vai acontecer. Mas o contrário acontece: corta-se a água. Se você observar o mapa, vai perceber que, nos 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, vai se chegar a um mínimo de água. Tenho absoluta certeza de que não haverá mais condição de pescar e de abastecer esses povos. Depois, será prejudicada a agricultura. E, por fim, eles não terão como se locomover. Ficarão barrados. Um povo submetido a uma vida nessas condições não sobrevive. Ou sobrevive por um tempo, depois acaba. Vão se esfacelar. Talvez se tornem índios citadinos. Perderão a cultura, perderão a língua. Estarão aqui, em algum subúrbio de Altamira. Não vou dizer que deixarão de serem índios, mas já não serão mais indígenas que vivem dentro de seu próprio contexto, com suas organizações e com a sua língua.
– É uma cultura que morre, um jeito de estar no mundo que morre, é isso?
Dom Erwin – Temos que fazer uma distinção: existe a morte física e existe a morte cultural. E aqui no Xingu, por causa de Belo Monte, poderão acontecer as duas coisas. A morte cultural, porque arrancarão deles a possibilidade de sobreviver em determinado espaço que, para eles, é muito significativo, porque é o chão de seus mitos, de seus ritos, é onde enterraram seus antepassados. Se você arranca isso dos indígenas, você corta o cordão umbilical deles com a terra. Precisamos compreender que eles têm outro relacionamento com a terra, diferente do nosso. Para nós, a terra é coisa que se compra e se vende. Para eles, não. Além da morte cultural, é provável que também aconteça a morte física, porque eles não estão preparados para viver na cidade. Os Arara, por exemplo, foram dizimados por doenças depois de serem contatados. Essa história nunca foi bem contada.
– O senhor afirma que Belo Monte é só a primeira de muitas barragens, uma forma de vencer a resistência para impor um projeto que é muito maior e que vai destruir o Xingu por completo. Como o senhor tem tanta certeza disso?
Dom Erwin – Todos os argumentos científicos sérios mostram que essa hidrelétrica não vai funcionar durante o ano todo. No verão, o Xingu baixa muito de nível e não existirá volume de água suficiente para fazer funcionar as turbinas. Portanto, vão investir bilhões e bilhões de reais em uma hidrelétrica que durante meses não funciona. Isso é um absurdo. E o governo sabe perfeitamente que é um absurdo. Então, é lógico que Belo Monte será só a primeira barragem. É preciso fazer tudo para que a população aceite essa primeira barragem, depois de décadas de resistência. Para, então, virem as outras. Porque só com as outras Belo Monte será um bom negócio. A segunda, a terceira e a quarta vão barrar o rio até lá em cima, em São Félix do Xingu. E aí, todas essas áreas que estão nas margens esquerda e direita do Xingu, que são áreas indígenas já homologadas, vão sofrer. E aí, os Assurini, os Araweté, os Paracanã, os Arara, e os Kayapó vão ser atingidos. É por isso que os Kayapó lá de cima, até mesmo os do Parque Nacional do Xingu, estão contra, embora estejam a mil quilômetros de distância. Eles já conhecem essa história. Depois de construir a primeira barragem, a tempestade passa, a resistência diminui – e aí completar a obra fica mais fácil. Esta é a estratégia do Governo. E aí eu afirmo: é o golpe fatal. Vão matar os índios, cultural e fisicamente.
– Parte da população brasileira acredita que os índios têm terra demais e há, inclusive, aqueles que acreditam que os indígenas são um entrave para o desenvolvimento. Por que parte dos brasileiros pensa assim?
Dom Erwin – Bom, primeiro precisamos entender que, para os índios, a terra não é uma mercadoria. Vou contar uma história real para que as pessoas entendam melhor essa relação totalmente diversa que o índio tem com a terra. Um branco mostrou um papel em que estava escrito: “República Federativa do Brasil, Título Definitivo de Terras, deste igarapé até o outro, fazendo frente com o rio Xingu e de fundos 2, 3, 5, 10 quilômetros”. Então, o índio perguntou: “Como você pode, com esse papel, dizer que é dono? Como? É um papel. Você fez a mata? Não. E a caça que está dentro da mata? Não. Você fez o rio e os peixes que estão no rio? Não. Você faz chover? Não. Você faz o sol brilhar? Não. Então, como você pode me mostrar um pedaço de papel e dizer que é dono?”.
– São formas de ver o mundo totalmente opostas, né? Só que uma delas tem o poder de impor sua visão de mundo como verdade única…
Dom Erwin – Essa cultura se choca com a cultura da sociedade majoritária, que trata a terra como mercadoria. E como mercadoria a terra tem de ser aproveitada, porque ela só faz sentido se for exaurida. Então, “aproveita” até arrasar a terra. Enquanto não tiver tirado a última gota de sangue, isto é, enquanto não tiver arrancado o minério e todas as riquezas do solo e do subsolo, o homem forjado nessa mentalidade não estará satisfeito. É claro, portanto, que as pessoas que veem a terra como mercadoria, num sistema de livre mercado, vão achar que o índio tem terra demais. O interessante é que essas mesmas pessoas nunca disseram: “Tal fazendeiro tem terra demais”. Não, isso não. Quando um fazendeiro bota uma placa e diz que a terra é dele – e aqui a grilagem de terra, como se sabe, é enorme, essas mesmas pessoas não reclamam. Mas, quando se faz a demarcação de uma área indígena, todo mundo grita. E, o mais curioso, há cidadãos que de repente aprendem geografia: “Eles têm uma terra do tamanho da Bélgica! Têm uma terra do tamanho de Portugal, uma terra do tamanho da Suíça!”.
– O que é terra, para os índios?
Dom Erwin – Para os índios, terra é vida. E, para o sistema da maioria dos brasileiros, terra é mercadoria. Talvez se consiga ainda fazer com que uns e outros entendam, pelo menos, que, ao demarcarmos as áreas indígenas na Amazônia, nós salvamos um pedaço da Amazônia.
– O senhor acredita que parte da Amazônia ainda está preservada por causa desse embate de visões de mundo?
Dom Erwin – Sim. E as pessoas precisam lembrar que a Amazônia tem uma função reguladora do clima mundial. Quer dizer: se a Amazônia acaba, o gaúcho lá embaixo, o mineiro, o capixaba vão sofrer as consequências. E nós ainda não sabemos qual é o alcance real dessas consequências. Se a temperatura aumentar três ou quatro graus, só para ficar num exemplo, será terrível! A verdade é que as consequências da destruição da Amazônia não cessarão nas fronteiras nem do Norte, nem do Brasil. Assim, os brasileiros de todas as regiões deveriam agradecer que há áreas de preservação indígena, há reservas extrativistas e há parques nacionais. É só porque existem essas reservas que há uma parte da Amazônia ainda preservada. Mas, infelizmente, as pessoas não percebem que a destruição da Amazônia também atingirá a sua vida.
– É curioso como as pessoas se sentem a salvo, não?
Dom Erwin – Pelas informações que recebi, estão planejadas 61 hidrelétricas para o Brasil, a maioria delas aqui na Amazônia. E mesmo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) não nega que serão atingidas diretamente áreas indígenas e também parques nacionais. Falam na maior cara de pau. Então, eu gostaria de saber o que vai sobrar.
– A maioria dos setores da sociedade, inclusive o governo, fala em “desenvolvimento sustentável”. Ninguém diz que não quer o desenvolvimento sustentável. Mas, na prática, o discurso que atravessa a sociedade é o de uma oposição entre desenvolvimento e meio ambiente. Por que o senhor acha que essa visão ainda persiste com tanta força?
Dom Erwin – É um mito. Que desenvolvimento é esse? Quem vai ser beneficiado com esse desenvolvimento? Basta ver hoje a situação em que está Altamira. E a obra está só no começo. Das condicionantes prometidas, nada. De 40 condicionantes colocadas pelo próprio Ibama, e outras 24 da Funai, quase nada. Não tem infraestrutura, nem habitação, nem saúde, nem educação. Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.
– A população tem medo de um “apagão”…
Dom Erwin – Sim. Esses grupos, favoráveis às grandes obras na Amazônia, ficam também operando com o fantasma do blecaute, do apagão. Ficam dizendo: “Olhe, os gaúchos que se cuidem, porque no inverno gaúcho não terá mais chuveiro elétrico, e depois não vão mais poder ver a novela das oito”. Mentira! Essa energia será exportada em forma de lingotes de alumínio. E ela não é nada limpa… E muito menos barata. Nós não temos excelentes universidades, cientistas de primeira classe, tecnologia de ponta? Por que não se investe agora para procurar fontes alternativas de energia? Aqui, nós temos sol das seis da manhã às sete da noite. No sul da Alemanha, por exemplo, não há mais uma casa que não tenha placa solar. E olha que eles têm um inverno comprido. Lá, em dezembro, o sol nasce às 9h, 10h, e às 5h da tarde já está escuro. E nós, aqui, às 6h já assistimos ao sol nascer. Temos sol até às 7h da noite. Por que não aproveitamos essa dádiva divina? E depois existe o litoral… O Brasil tem um litoral enorme, que não tem fim. Por que não aproveita um pedaço, pelo menos, onde não há turismo, para investir mais em energia eólica? E, ainda, grande parte dos linhões de transmissão está obsoleta. Perde-se uma enormidade de energia por causa dessa deterioração. Por que não investir no reparo e no restauro dos linhões de transmissão?
– Por que o senhor acha que o governo quer tanto fazer Belo Monte?
Dom Erwin – Esta é minha grande pergunta. Eu não tenho resposta. Apenas vou adivinhando. Por que o Lula era contra e de repente está a favor? Por que o PT era contra Belo Monte e depois de chegar ao governo passou a defender exatamente aquilo que antes combatia? Por que os deputados que nós elegemos aqui hoje são a favor e não sabem nem por quê? O que há por trás? Por que essa metamorfose camaleônica? Na campanha era contra, como é o caso do deputado Zé Geraldo (PT-PA), que andava aqui embaixo, na beira do rio, dando as mãos e rezando, de camisa branca, participando de místicas. E agora, meu Deus! Ele defende exatamente o contrário: “Belo Monte tem que sair, a gente não pode colocar a Amazônia debaixo de uma redoma”. Ninguém está propondo uma Amazônia intocável. O que nós que nos unimos na posição contra Belo Monte defendemos é que as riquezas da Amazônia sejam usufruídas de uma maneira inteligente – e não de uma maneira burra.
– Historicamente, o movimento de resistência à Belo Monte sempre apoiou o Lula. O que aconteceu?
Dom Erwin – Aqui, a resistência contra Belo Monte se identificou com o PT, ou o PT se identificou com a resistência contra Belo Monte. Isso até o Lula tomar posse. Quando descobrimos que o Lula tinha mudado de ideia, caímos das nuvens. Meu Deus, como é que pode? E então os petistas daqui também mudaram de lado. Começaram, inclusive, a hostilizar as pessoas que ainda defendiam o Xingu contra esse monstro. Há gente que antigamente sentava aqui nesta sala e que hoje não aparece mais, porque sabe que o bispo permanece na sua posição contra Belo Monte. Há gente do PT que parece fanático religioso. Fanático religioso é terrível, né?
– Por quê?
Dom Erwin – Porque não tem discussão, não tem diálogo. Com fanático você nunca vai entabular um diálogo que preste, ele já se julga dono da verdade, tem a sua certeza. Então, o PT diz: “As razões defendidas pelo partido têm que estar acima da própria consciência dos partidários”. E muita gente reza pela cartilha do PT porque acha que aí está tudo resolvido. Na realidade eu não posso, por causa da minha filiação partidária, ter opinião própria, ou opinião divergente. Aqui, quem tinha opinião própria e não quis trair a sua consciência, como Antonia Melo, se desfiliou do partido.
– Foi um golpe muito grande essa mudança de posição com relação à Belo Monte?
Dom Erwin – Foi uma traição, um golpe tremendo. É muito duro você ser traído por pessoas a quem você deu as mãos. Inclusive foram perguntar, à boca pequena: (fala baixinho): “Bispo, em quem vai votar? O senhor não pode falar isso no sermão, mas em quem o senhor vai votar?”. Eu disse: “Eu vou votar no Lula. Afinal de contas, é o partido que nasceu e surgiu das bases, etc. Temos que lutar por outro Brasil, gente”. Tempos depois o povo passou a dizer: “Agora o bispo está engolindo…”.
– Está sendo difícil engolir o que o senhor chama de “traição”?
Dom Erwin – Eu nunca falei em público sobre o meu voto, mas todo mundo sabia que nós queríamos um Brasil diferente, um Brasil justo, fraterno, sem corrupção, um Brasil com ética e com todos esses ideais que nós tínhamos e ainda defendemos. Mas os caciques do PT da primeira hora foram embora. Quem está aí dos antigos? Se afastaram. Notaram que foram traídos também. Eu me sinto traído. Agora dizem: “O bispo era a favor dessa petezada”. E agora eu tenho que engolir os sapos…
Dom Erwin Kräutler parte 5: “Hoje vivemos em uma ditadura civil”