No último domingo, 3 de abril de 2016, nosso amigo Dom Erwin passou o bastão da prelazia do Xingu a seu sucessor, Frei João Muniz Alves. Depois de 35 anos de atuação como bispo, deixa o comando da Igreja na maior diocese católica do mundo, mas não a missão que iniciou há mais de 55 em uma das regiões mais violentas do Pará: defender sua gente.
Foram tantos os episódios bárbaros que Dom Erwin viveu e enfrentou no Médio Xingu esses anos todos – da prisão pela Polícia Militar, em 1983, quando defendeu canavieiros que trancavam a Transamazônica por melhores condições de trabalho; o atentado que sofreu em 1987, matou seu motorista e o deixou hospitalizado por seis semanas; as incontáveis ameaças de morte que lhe impuseram proteção policial desde 2006, quando assumiu o segundo mandato como presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI); ou o assassinato da amiga Dorothy Stang em 2005, à morte agonizante do Xingu e seu povo com a construção de Belo Monte -, que não seria de se estranhar se tamanha dor e sofrimento vistos e sentidos tivessem trincado sua alma.
Qual o que! É certo que Dom Erwin, que por envergadura e uma certa majestade na postura lembra uma castanheira, troveja e faísca pelos olhos quando indignado. É certo também que tem trovejado e faiscado com muita frequência (nos sermões, em entrevistas ou em seus escritos) porque as indignações têm se amontoado. Mas o nosso amigo, quando está conosco, é imensamente doce.
Dom Erwin é contador de causo. Fala muito, sorri muito, é mordazmente irônico, e têm uma sensibilidade excepcional para aperreios alheios. Certa vez, em 2012 – era o último dia do planejamento do Xingu Vivo e tínhamos acabado de descobrir que a Norte Energia e o governo haviam infiltrado um espião em nossa reunião, e estávamos tensos e furiosos -, ele veio nos ver. Abraçou uns aqui, descabelou outro ali, contou um episódio divertido que viveu com um padre americano na Transamazônica, imitando o sotaque gringo à perfeição, depois comentou que havia chegado de um giro pelas paróquias da região. “Imaginem que me contaram que a Norte Energia vem tentando botar medo nas pessoas dizendo que Dom Erwin, quando reza missa, carrega um tresoitão debaixo da batina. Quanta bobagem!”. Meneou a cabeça, sorriu de lado, e nos olhou com aquele seu ar de deboche quando fala “deles”.
Quanta bobagem… achar que, com mentiras, difamação, ameaças, golpes baixos, violência extremada, ou até assassinatos, se anula um amor tão imenso como o dele – e como o nosso – pelo Xingu e sua gente. Ou se anulam resistências contra as injustiças.
Recebemos com muita alegria nosso novo bispo, Dom João Muniz Alves, nascido maranhense, e franciscano de vocação. Que siga na defesa do Xingu e de sua gente como há 35 anos é a tradição da Prelazia do Xingu.
Quanto a Dom Erwin, quem sabe o teremos mais para nós. Quem sabe diminua o ritmo de seu trabalho, e o encontremos dia desses, na beira do rio, para prosear, contar causos, ver o Xingu correr manso. E juntos assombrarmos os “eles”.
Texto e fotos: Verena Glass