Por Verena Glass
O desmatamento na Amazônia extirpou 18% de suas florestas nos últimos 30 anos. A conclusão foi divulgada recentemente pelo projeto Mapbiomas, que vem fazendo um mapeamento sistemático dos biomas brasileiros em parceria com diversas universidades e instituições de pesquisa. Para as populações indígenas e tradicionais, a perda da vegetação nativa já trouxe mudanças sensíveis ao clima da região, mas uma das preocupações mais agudas é o impacto sobre as bacias hidrográficas, que sofrem não apenas com a perda das matas ciliares, mas com uma exploração cada vez maior e desordenada por grandes projetos de mineração, agropecuária, barragens e hidrovias.
No final de 2018, o governo do Pará deu início aos procedimentos legais para a criação do Comitê de Bacias do Estado, e desde abril de 2019 iniciou uma série de audiências públicas para supostamente promover uma participação ampla da sociedade civil no debate. A primeira audiência, ocorrida em Altamir, no entanto, foi duramente criticada por falta de embasamento cientifico e participação das populações interessadas.
De acordo com organizações e movimentos sociais e indígenas de vários estados da Amazônia, o desmonte da legislação de proteção ambiental pelo governo Bolsonaro, os ataques a Unidades de Conservação e Terras Indígenas e quilombolas, e as manifestações favoráveis a projetos de superexploração dos bens naturais do bioma – megamineração, expansão da agropecuária, novas hidrelétricas, etc – apontam para um caráter regulador do avanços de megaprojetos sobre a região, inclusive por meio dos programas de gestão hídrica e comitês de bacia.
A partir desta leitura, tem crescido entre os movimentos o debate sobre a organização de comitês populares de bacias hidrográficas. Na última semana, foi realizado o primeiro seminário “BACIAS HIDROGRÁFICAS NA AMAZÔNIA: O sagrado e a defesa dos rios dos povos das águas”, com participação de cinco povos indígenas – Munduruku, Kumaruara e Borari (PA) e Ka’apor e Guajajara (MA) -, além de representantes de movimentos sociais, quilombolas e beiradeiros..
De acordo com Dion Monteiro, do Movimento Xingu Vivo para Sempre – um dos articuladores do Comitê Popular de Bacias no Pará -, o seminário buscou socializa a leitura dos povos indígenas acerca dos rios, partindo da sua cosmovisão: como os rios interagem de forma mística e metafísica com esses povos e como atendem às suas necessidades. “O evento abordou as ameaças que os rios sofrem a partir da mineração, dos detritos despejados, mas principalmente tentou trabalhar as bacias hidrográficas a partir do ponto de vista de como a os povos indígenas entendem o rio nessa relação de integração, de unidade. A tentativa era de apresentar a importância do rio e das bacias hidrográficas a partir de uma outra perspectiva, a partir de uma relação que trata o rio não como fonte de energia ou transporte de mercadoria, de soja, de minério, etc”, explicou Dion.
Também foram discutidos os projetos dos governos locais e fedais dos últimos anos para a Amazônia. De acordo com Dion, concluiu-se que todos os governos que vieram nesse último período apresentaram propostas desenvolvimentista ou liberais a favor do capital nacional e do capital internacional. Mas a mesa também apresentou a necessidade de que os povos indígenas avancem nos seus projetos de autonomia e de autogoverno. “Algumas lideranças falaram de seus projetos de proteção do território; da autodemarcação; da fixação de guardiões florestais. Outros povos falaram sobre a sua experiência de autonomia a partir do seu plano de vida, da sua autogestão territorial, da sua autonomia nos projetos de educação e de saúde, mas também de segurança”.
Por fim, os participantes do seminário elaboraram um documento conjunto que foi divulgado no Brasil e no exterior, e pontua tanto seus posicionamentos quanto demandas.
Leia na íntegra a carta do encontro, ocorrido na UFOPA, Santarém (PA), nos dias 27 e 28 de abril de 2019
SEMINÁRIO “BACIAS HIDROGRÁFICAS NA AMAZÔNIA: O sagrado e a defesa dos rios dos povos das águas”
Nós, participantes do Seminário “Bacias Hidrográficas na Amazônia: O sagrado e a defesa dos rios dos povos das águas”, após dois dias reunidos na Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, consideramos,
Houve um tempo onde mulheres, homens, crianças e anciãos vivam em harmonia com a floresta, com os rios, com as aves, com os peixes, com os animais, enfim, com a natureza. Isso ocorreu há 519 anos. Desse tempo para cá, tudo mudou, os peixes foram respirar em outros lugares, a cutia, a anta, a paca, o porcão, demoram muito mais a nos visitar. Os pássaros estão cantando mais baixinho, parece que perderam um pouco da sua alegria.
Ouvimos falar que em outros países e continentes as águas não são mais as mesmas, cresceram e se revoltaram em lugares onde antes viviam tranquilas, levando consigo culturas e tradições, e sumiram de locais onde antes eram abundantes. Aqui, na Bacia do Rio Tapajós, às coisas também já estão mudando, as águas dos rios estão doentes e as pessoas também têm adoecido juntas com elas. As mineradoras e suas dragas, os madeireiros, os barrageiros chegaram e tentam nos enganar com mentiras e migalhas. Tentam apagar nossa memória, tentam apagar nossa história. Para onde vão os espíritos que ali viviam?
Para os governos e grandes empreendedores as águas de nossos rios são apenas fonte de energia, fazendo as turbinas das hidrelétricas funcionarem, transportando soja, minério, madeira, matando a mãe dos peixes, matando nossos sonhos, destruindo nossa vida. O Estado brasileiro, amigo das empresas, busca exterminar os povos indígenas, os quilombolas, os povos tradicionais, os povos dos rios, os povos das florestas.
Com tudo isso, resolvemos:
- Ampliar os processos de intercambio e trocas de experiências entre os povos presentes no seminário, e outros parentes que não estiveram presentes no mesmo;
- Demandar à UFOPA e realização de eventos que propiciem o encontro e discussão entre lideranças e estudantes indígenas;
- Articular com as diversas entidades de defesa dos direitos humanos a proteção e segurança das lideranças ameaçadas de morte em sua ação de defesa do território;
- Cobrar dos órgãos responsáveis e proteção aos Awa-Guajá de recente contato, bem como dos isolados que se encontram em situação de vulnerabilidade, tendo seu território invadido;
- Denunciar a Prefeitura de São João do Caru em decorrência da contaminação do rio Caru, com lixo hospitalar.
- Suspender imediatamente qualquer projeto de mineração que afetem rios e terras indígenas na Amazônia
- Realizar consultas prévias, nos moldes da convenção 169 da OIT, antes de iniciar qualquer estudo para implantação de projetos, em áreas indígenas, extrativistas, quilombolas, e seu entorno, garantindo ainda o direito de veto ao projeto, por parte dessas populações.
Assinam:
Associação de Mulheres Indígenas Munduruku – Wakomboru
Associação Indígena Wizaru – Guerreiras da Floresta
Associação Indígena Paririp do povo Munduruku do Médio Tapajós
Conselho Indígena Tapajós Arapiuns – Departamento de Mulheres
Conselho de Gestão do Povo Ka’apor
Associação Indígena Borari de Alter do Chão
Apoiadores
Fórum da Amazônia Oriental
Movimento Xingu Vivo.