Por Eraldo Paulino
Entre os dias 05 a 07 de julho, mulheres munduruku do Alto, Médio e Baixo Tapajós, articuladas na Associação das Mulheres Indígenas Munduruku Wakoborun, realizaram a sua primeira assembleia na aldeia Nova Trairão, município de Jacareacanga, no Alto Tapajós. Para fortalecer alianças estratégicas, o evento, que reuniu cerca de 300 participantes, também contou com a presença das mulheres do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) e de representantes dos povos vizinhos Arapiuns, Borari, Kumarauara e Tupinambá, além de duas lideranças Guarani e Kaiowa do Mato Grosso do Sul.
A bacia do Tapajós é uma das regiões de maior concentração de garimpos ilegais na Amazônia, responsáveis por derramar no rio e seus afluentes uma enorme quantidade de rejeitos tóxicos, como o mercúrio. Ao mesmo tempo, a construção de dezenas de portos e de outros projetos de infraestrutura, bem como a pressão madeireira e da monocultura da soja sobre os territórios indígenas, tem aumentado em ritmo acelerado no último período. Discutir essa conjuntura, aliada à morosidade do governo na demarcação dos territórios munduruku, por um lado, e, por outro, alternativas produtivas e a construção do Plano de Vida e do Bem Viver da Nação Munduruku, foi um dos principais objetivos da assembleia, de acordo com a coordenação da Wakoborun.
Nesse sentido, a assembleia se dividiu em três eixos temáticos: Agroecologia e Artesanato, Comunicação, e Direitos e Proteção da Terra.
No primeiro eixo, ficou acordado que as aldeias do rio Tapajós e dos afluentes Tropas, Cabitutu e Teles Pires devem investir na assessoria técnica para melhorar a produção e a comercialização de farinha, óleo de copaíba, frutas diversas e a criação de galinhas, peixes, abelhas e tracajás. Também será feito um esforço para ampliar as capacitações para a profissionalização da produção de artesanato. No caso de aldeias dos rios Cabitutu e Teles Pires, que não contam com membros na Wakoborun, a estratégia seria buscar parceria com as associações locais. “Nós estamos provando que preservando o rio e a floresta em pé é que está a nossa principal riqueza”, afirma Leusa Munduruku, presidente da Wakoborun.
No eixo Comunicação, a prioridade deve ser a formação em comunicação popular, com oficinas de drone, fotografia, vídeo e rádio. De acordo com as indígenas, a comunicação não seria apenas uma arma na batalha das ideias, mas deverá valorizar também os saberes dos pajés e dos membros mais experientes da comunidade munruruku, como já ocorre em aldeias como a da Praia do Índio. A própria Wakoborun já possui um drone para ser usado em atividades de autodemarcação e para registros dos eventos, explicam as indígenas, e há avanços na produção audiovisual valorizando a língua Munduruku.A expectativa é potencializar, sobretudo para as e os jovens, mais oportunidades de formação nesse campo.
Já no eixo Direitos e Proteção da Terra, foi reafirmado o compromisso de ampliar as alianças e captar recursos para concluir a autodemarcação de territórios, tática que tem contado com a participação de um número crescente de mulheres. A autodemarcação é uma das principais estratégias de resistência e autoproteção deste povo frente à decisão política do Governo Federal de paralisar ou rever a demarcação de terras indígenas, explicam as mulheres. O grande destaque deste debate foi o compartilhamento, pela cacica Leila Guarani e pela socióloga Clara Kaiowá, da experiência das retomadas dos Guarani e Kaiowa e do enfrentamento à expansão do agronegócio no Mato Grosso do Sul. “Vamos nos unir. Não importa se o inimigo está aqui, nós estamos resistindo desde 1500, não é esse governo que vai nos fazer parar”, disse Clara Kaiowá, para quem a indicação da conterrânea Tereza Cristina ao Ministério da Agricultura foi a primeira ofensiva do governo de Bolsonaro contra os direitos indígenas. “A nossa mãe é a Terra. Ela está chorando por nós. A nossa mãe a gente não pode vender, não pode entregar pra ruralista, mesmo ele querendo tirar ela da gente. Vamos abraçar juntos essa mãe que está chorando por nós”, reforçou a cacica Leila.
Desafios internos
A pressão dos empreendimentos de infraestrutura e principalmente dos garimpos ilegais sobre o território munduruku tem exigido das organizações indígenas não apenas uma articulação para o enfrentamento dos agentes externos, mas também um processo de formação e debates internos diante do assedio e das tentativas de cooptação de lideranças. “Infelizmente muitos parentes nossos estão se vendendo pro garimpo. Por isso a realização dessa assembleia pelas mulheres ajuda muito a nossa luta. É muito importante a gente se convencer de que as nossas riquezas estão aqui e são nossas”, explica Arnaldo Kabá, cacique geral do povo Munduruku.
Foi por denunciar as atividades de garimpo que Maria Leusa Muduruku, uma das articuladoras da Associação do Wakoborun, foi ameaçada de morte. Ela chegou a ser indicada para o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, mas decidiu recusar e contar com a proteção dos guerreiros e das guerreiras do seu povo para continuar a luta de resistência territorial porque o programa, segundo ela, não apresentou condições de protegê-la de fato. “Um programa que me tiraria da luta daria vitória aos garimpeiros. Eu decidi ficar e enfrentar. Hoje são eles que têm medo da Maria Leusa. Nós somos mais de 15 mil Munduruku na região. Eles precisam entender que com a gente não se mexe”, explica.
Maria Leusa também foi uma das principais lideranças do processo de resistência contra a construção da hidrelétrica de São Luis do Tapajós, que acabou suspensa pelo Ibama em 2016. Como parte das estratégias de luta, os munduruku realizaram um extenso processo de debate e formação interna que culminou na construção do Protocolo de Consulta Munduruku, documento que criou critérios para a aplicação da Consulta Livre, Previa e Informada da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em casos de projetos que afetem seus territórios.
No início de julho, o documento serviu de base para uma ação que acabou cancelando uma audiência pública convocada pelo governo para discutir a construção de uma estação de transbordo e carga no Médio Tapajós (leia aqui a carta dos Munduruku). “Eles querem fazer esse tipo de reunião e depois mentir que nos consultaram. Eles deveriam fazer consulta prévia com todas as aldeias do Médio Tapajós que serão impactadas por essa obra de porto, mas antes de decidirem fazer o porto. Só que ao invés disso querem fazer reuniões para fingir que nos ouvem e nos meter a licença goela abaixo. A gente foi lá e cancelou a reunião, pra eles aprenderem a respeitar o nosso Protocolo de Consulta”, explicou Alessandra Korap Munduruku, liderança na região do Médio Tapajós.
Protagonismo
feminino
Criada
em 2018, a Associação das Mulheres Indígenas Munduruku Wakoborum buscou
potencializar um protagonismo feminino que surgiu no bojo da resistência contra
o complexo hidrelétrico Teles Pires-Tapajós do governo federal no início da
década, explica Rosamaria Loures, pesquisadora e assessora da associação
Wakoborum. “Em 2013 os Munduruku decidiram
viajar 900 km para ocupar o canteiro de obras de Belo Monte, por entenderem que
esta seria a porta de entrada de grandes barragens na Amazônia. A partir daí é
construída uma parceria com o Movimento Xingu Vivo e uma série de aprendizagens
são assimiladas nessa luta contra os mega empreendimentos”.
A realização da I Assembleia das Mulheres Munduruku foi decidida em fevereiro desse ano, durante o III Encontro das Mulheres Munduruku, na aldeia Sawre Maybu, no município de Itaituba, Médio Tapajós. De acordo com as lideranças do movimento, no início alguns caciques ofereciam resistência aos encontros de mulheres, mas a organização de uma série de atividades de formação legitimou a importância da articulação feminina. E como Maria Leusa costuma dizer, quando as mulheres querem, elas fazem.
Leia abaixo a carta da I Assembleia das Mulheres Munduruku
Carta da I Assembleia das Mulheres Munduruku
Pintamos como a mulher guerreira Wakoborun, nós mulheres munduruku do alto, médio e baixo Tapajós, junto com os parentes Kumaruara, Arapiuns, Borari, Tupinambá, Guarani e Kaiowa tivemos a I Assembleia de Mulheres Munduruku, na aldeia Nova Trairão, de 05 a 07 de julho 2019.
Contou com a presença de quase trezentas pessoas, quarenta e cinco aldeias do médio e alto Tapajós, incluindo a presença do cacique geral Arnaldo Kaba, representações das associações Pariri, Wuyxaxima, Cimat. Construímos esse momento importante para continuar a resistência das mulheres guerreiras, pajés, guerreiros e caciques. Nós sempre vamos falar da nossa luta e cuidar dos nossos territórios, que agora ele está doente pelas invasões, pelo mercúrio, contaminando e envenenando as nossas crianças e os nossos rios. E vamos continuar firmes, sem negociar jamais o nosso território, a nossa vida e o futuro do nosso povo.
Exigimos que empresas e o governo respeitem nosso modo de vida, nossas decisões, como está no protocolo de consulta do povo Munduruku. Já construíram as barragens no nosso território no Teles Pires, e destruíram os nossos locais sagrados Karobixexe e Dekoka’a. Nós não vamos desistir de exigir que o governo e as empresas que dinamitaram a morada dos nossos espíritos, devolvam ao nosso território nossas urnas sagradas, senão nós vamos sofrer também com essas consequências.
Nós construímos esse momento para resistência. Pensamos em projetos para construirmos cada vez mais autonomia para nossa luta. Trabalhamos juntos na construção do nosso plano de vida, com grupos de trocas para garantir o futuro das nossas gerações, fortalecendo o nosso artesanato, a agroecologia, os direitos de nossos professores e professoras que precisam de regularização das escolas indígenas para terem mais autonomia para trabalhar com a cultura e com nossa identidade.
Um momento muito forte para todos nós, na Assembleia, foi a troca de experiência com as parentes Guarani e Kaiowa, que nos contaram da sua luta no Mato Grosso do Sul, onde as suas terras foram roubadas para os fazendeiros. Ficamos muito emocionados com a coragem das parentes e a violência que sofrem com os fazendeiros, o governo, a polícia, nas retomadas de terras. Vimos que a nossa luta é uma só, e que sem luta, nós indígenas não conseguimos nada.
Agora querem acabar com mais um local sagrado: Daje kapap Eipi. Nós vamos sempre continuar na luta pela demarcação das nossas terras Sawre Maybu, Sawre Jaybu, Sawre Apompu e outros territórios, que nós sofremos com essas leis de morte querendo arrancar a nossas raízes.
Os nossos direitos que estão na Constituição são resultado de muita luta dos que vieram antes de nós. Vamos continuar lutando por eles, pelos nossos filhos e netos. Estamos construindo caminhos de vida, e não vamos parar, mesmo com esse governo que nos odeia e quer a nossa morte. Nós vamos continuar lutando pelo nosso território, pelas nossas florestas, pelo nosso rio que é como o sangue que corre no nosso corpo, que dá força para o nosso povo resistir. Sawe!
Aldeia Nova Trairão, 7 de julho de 2019