Para: FUNAI, IPHAN, MP
Nós abaixo assinados vimos a público manifestar nosso apoio irrestrito à ação legítima, autônoma e independente realizada pelo povo Munduruku, que levou à recuperação de doze Itig’a (urnas funerárias de seus antepassados) que se encontravam no Museu de História Natural em Alta Floresta (MT), durante o período natalino de 2019.
O que segue abaixo visa contextualizar brevemente o histórico de relações entre o povo Munduruku e a sociedade luso-brasileira e Estado brasileiro para então relembrar o conturbado processo no qual se deu a construção das hidrelétricas de Teles Pires e São Manoel, para que se possa melhor compreender a sequência dos fatos que culminaram nesta ação histórica.
A primeira referência escrita conhecida que menciona o povo
Munduruku data de 1742, porém registros arqueológicos milenares têm sido
associados a seus antepassados, e é provável que a sua língua, que
pertence ao tronco Tupi, também possua antiguidade semelhante.
Após resistirem à invasão de seus territórios pelas frentes de
expansão colonial vindas do sul, no atual estado do Mato Grosso, e do
norte, pelo próprio rio Tapajós, uma trégua entre o povo Munduruku e os
portugueses foi acordada em 1795 e 1796. Mas a instalação da indústria
gomífera no Rio Tapajós no final do século XIX levou ao avanço da
sociedade nacional para dentro de seus territórios, levando à sua
fragmentação. É por isso que as atuais terras indígenas homologadas ou
em processo de demarcação relativas ao povo Munduruku representam apenas
fragmentos do que já foi o vasto território ocupado por este numeroso
povo, ao lado de diversos outros povos indígenas que também
historicamente habitaram a bacia do Tapajós. Isto ajuda também a
explicar porque existem lugares sagrados como Karobixexe (também
conhecida como Sete Quedas, no baixo rio Teles Pires, que foi destruído
pela construção da hidrelétrica de Teles Pires e que também era um lugar
sagrado para os povos Kayabi e Apiaká) e Dekoka’a (também conhecido
como Morro dos Macacos, destruído pela hidrelétrica de São Manoel) fora
das terras Munduruku oficialmente reconhecidas pelo Estado brasileiro.
Este fato – de diversos lugares para além dos que estão no interior das
atuais terras indígenas reconhecidas ou em processo de reconhecimento
comporem a geografia cultural do povo – já havia sido indicado pelos
próprios Munduruku em uma carta elaborada em 2013, que foi amplamente
divulgada em português e inglês. Neste documento, Karobixexe e Dekoka’a
estavam elencados dentre os lugares significativos do povo Munduruku.
Infelizmente, os povos Munduruku, Apiaká e Kayabi não foram
consultados sobre a construção das hidrelétricas de Teles Pires e São
Manoel, conforme estipula a Convenção 169, fato que foi reconhecido por
unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(TRF1) em dezembro de 2016, que ainda considerou inválida a licença de
instalação concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a construção da usina de Teles
Pires. À violação de uma área de cemitério sagrado, representada pela
escavação de vasilhas cerâmicas dos arredores da usina de Teles Pires
dentro do contexto do licenciamento ambiental, somou-se ao aniquilamento
de Karobixexe ou a Cachoeira das Sete Quedas. Karobixexe é o principal
lugar sagrado do povo Munduruku, por ser um portal para onde os
espíritos de seus mortos iam após a morte e por ser um berçário natural
de espécies de peixes, é considerado como morada de uma entidade
sobrenatural, denominada Mãe dos Peixes, que é responsável pela vida e
reprodução das espécies de peixe da região. Desde a construção da
hidrelétrica de Teles Pires, a partir do ano de 2011, os Munduruku,
Apiaká e Kayabi ficaram sem esta referência fundamental para seu próprio
senso de identidade, e os Munduruku relatam uma série de punições
sofridas por eles pelos espíritos, que não tem mais para onde ir.
Em 2015, após vistoria, uma equipe especializada do Ministério
Público Federal constatou em seu parecer técnico sobre a Cachoeira das
Sete Quedas que “Como local sagrado, deveria ser protegido pelo Estado
brasileiro. Sendo laico, o Estado tem a obrigação de não interferir no
livre exercício dos cultos religiosos e garantir proteção aos locais de
culto. Apesar da relevância atribuída à integridade das corredeiras do
Salto Sete Quedas, os documentos demonstram que o processo de
licenciamento ambiental não atendeu adequadamente à normativa
constitucional e convencional. O Ibama emitiu a Licença prévia e de
Instalação n.818/2011 sem ouvir os povos indígenas afetados” (2015, p.
13). No mesmo ano o próprio Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional afirmou que as Itig’a deveriam ter o destino que os
Munduruku desejassem (Ofício n/ 025/2015 – CNA/DEPAM/IPHAN).
No ano de 2017, os Munduruku realizaram duas viagens para visitar as
Itig’a em Alta Floresta. Na segunda ocasião, foram recebidos pela Força
Nacional com bombas de gás lacrimogêneo, a despeito do fato de que as
suas manifestações têm sempre sido pacíficas. O fato de os Munduruku
precisarem utilizar recursos próprios para recuperar as suas Itig’a,
enfrentando uma exaustiva e perigosa viagem, novamente demonstra um
enorme desrespeito com as suas crenças e tradições e um grave descaso
com as suas urgentes necessidades, amplamente divulgadas por meio de
cartas públicas há pelo menos 6 anos.
Na mais recente carta, após a ação de resgate das Itig’a, escreveram
os Munduruku: “O que os pariwat [não indígenas] olham como objetos,
nossos pajés sabem que são nossos antepassados. Os espíritos foram
arrancados da sua terra e estavam tristes, nós tivemos que devolver eles
ao nosso território. Por isso, resgatamos nossos espíritos. Nossas
Itig’a não podem ficar presas em Museu. Nenhum Museu de pariwat é lugar
de Itig’a.”
Após a retomada das urnas, o Iphan voltou a se manifestar, mediante
Nota de Esclarecimento datada de 27/12/2019, publicada em sua página na
internet, onde observa “Em relação à destinação final dos vasilhames, o
Iphan reitera o posicionamento, já manifestado desde 2015, de que, em
respeito ao grupo Munduruku, os vasilhames devem ter o destino que a
etnia solicitar”. Saudamos este posicionamento. Não há compensação
possível para a destruição e violação dos lugares sagrados pela
construção de barragens no rio Teles Pires. A violação destes lugares
poderá eventualmente ser configurada como etnocídio ou genocídio, por
levar à destruição cultural dos povos Munduruku, Apiaká e Kayabi. A
recuperação das Itig’a pelos Munduruku deve ser entendida como a única
ação que lhes restava possível, e por isto conta com o nosso apoio.
Conclamamos às instituições para seguir honrando o que já foi
anteriormente afirmado por elas mesmas e garantir ao povo Munduruku seus
direitos.
Jacareacanga/PA – Brasil, 13 de janeiro de 2020
Assinam:
– International Rivers – Brasil
– Sociedade para a Antropologia das Terras Baixas de América do Sul (SALSA)
– Centre of Amerindian Studies, University of St Andrews
– Programa de Antropologia de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará
– Grupo de Trabalho Ecologia(s) Política(s) Desde El Sur/Abya yala do CLACSO
– Discentes do Programa de Pós Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
– Grupo de Estudos em Ecologia Histórica e Politica das Bacias dos Rios Trombetas, Tapajós e Xingu
– Red Descolonialidad y Autogobierno
– Luta Socialista – Corrente Interna do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)
– Unidos Pra Lutar – Tendência Sindical
– Coletivo Feminista Marielle Vive!
– Sindicatos dos Trabalhadores Químicos de São José dos Campos – São Paulo e Região
– Movimento Revolucionário Socialista – MRS
– Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
– Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Federais de Ensino Superior no Estado do Pará – SINDTIFES-PA
– Resistência – Corrente interna do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)
– Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado do Pará (Sintsep-PA)
– Rádio Iara – www.radioiara.com
– Instituto Amazônia Solidária (IAMAS)
– Quilombo Raça e Classe PA
– Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Belém
– Sociedade de Arqueologia Brasileira
– Miriam Lang, profesora de la Universidad Andina Simon Bolivar, Ecuador
– Cristiana Barreto, arqueóloga
– Daniela Fernandes Alarcon, antropóloga
– Fernando Ozorio de Almeida, Departamento de Arqueologia/Universidade – Federal de Sergipe
– Roberto Espinoza, Perú, Red Descolonialidad y Autogobierno
– Bruno S. Ranzani da Silva, PhD, Darq/UFS
– Hugo Lopes Tavares, mestrando em arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP)
– Alberto Acosta, presidente de la Asamblea Constituyente de Ecuador (2007-2008)
– Prof. Dr. Jeremy M. Campbell, Roger Williams University, Bristol Rhode Island – EUA
– Carlos Nobre, Pesquisador Colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP
– Renata Pedroso de Araujo, doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP)
– Philip Martin Fearnside, Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
– Miguel Aparicio, Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa)
– Jair Boro Munduruku, arqueólogo
– Prof. Raoni Valle, Laboratório de Antropologia Visual e
Arqueologia da Imagem – LAVAI/Universidade Federal do Oeste do Para –
UFOPA
– Denielle M. Perry, Assistant Professor, Northern Arizona University – School of Earth & Sustainability
– Guilherme Z. Mongeló, arqueólogo
– Mark Harris, University of St Andrews
– Jorge Eremites de Oliveira, Professor da Universidade Federal de
Pelotas e ex-presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira
– Anderson Márcio Amaral Lima, arqueólogo
– Francisco Pugliese, Pesquisador Colaborador Pleno, Laboratório de
Geocronologia e Geoquímica Isotópica, Instituto de
Geociências/Universidade de Brasília
– Laymert Garcia dos Santos, Professor titular da Unicamp – aposentado
– Stella Senra, Professora associada da PUC-SP – aposentada
– Maurício Torres, professor do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares – Ineaf / UFPA
– Dr Laura Osorio Sunnucks, Head of the Santo Domingo Centre of
Excellence for Latin American Research, Africa, Oceania and the Americas
– British Museum
– Felipe Milanez, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Professor Milton Santos – IHAC, Universidade Federal da Bahia – UFBA
– James Fraser, professor de Ecologia Politica – Lancaster University
– Dr. Eduardo Kazuo Tamanaha, arqueólogo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM)
– Carolina Ortiz Fernández, UNMSM – Perú
– Morgan Schmidt, Massachusetts Institute of Technology (MIT)
– Jaqueline Gomes Santos, arqueóloga, Doutoranda em Antropologia – UFMG
– Daniela Aparecida Ferreira, arqueóloga
– Nádia Carrasco Pagnossi, Doutoranda em Arqueologia MAE-USP
– Fabíola Andréa Silva, Docente e Pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
– Hugo Blanco Galdos, dirigente campesino, Perú
– Juarez Pezzuti, professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/UFPA
– Nik Petek-Sargeant, Project Curator for the Endangered Material Knowledge Programme, the British Museum
– Kena Azevedo Chaves, geógrafa, pesquisadora de doutorado da UNESP/Rio Claro
– Dr. José R. Oliver, Reader in Latin American Archaeology, Institute of Archaeology-UCL
– Profa. Dra. Bruna Cigaran da Rocha – Programa de Antropologia e Arqueologia, UFOPA
– Rogério Haesbaert – geógrafo, Universidade Federal Fluminense
– Thomas Moore, antropólogo, Puerto Maldonado, PERU
– Cândido Grzybowski, sociólogo e Presidente do Conselho Gestor do Ibase
– Danilo Quijano, Red Descolonialidad y Autogobierno
– Paulo Tavares, professor da FAU-UnB
– Erêndira Oliveira, ARQUEOTROP – Laboratório de Arqueologia dos
Trópicos, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
– Douglas Diniz – Executiva Nacional do PSOL
– Silvia Letícia – Secretaria Executiva Nacional da CSP CONLUTAS
– Wellington Cabral – Executiva da Federação dos Trabalhadores Quimicos de São Paulo
– Gérson da Silva Lima, Coordenador Geral do Sintsep-PA
– Edmilson Rodrigues – Deputado Federal (PSOL-PA)
– Mauricio Matos, da Coordenação Executiva da FENAMP – Federação Nacional dos Servidores dos Ministérios Públicos Estaduais
– Dion Monteiro – Coordenador Executivo do Instituto Amazônia Solidária (IAMAS)