COVID 19 em Altamira: restrições são inócuas frente a falta de ação, afirmam movimentos sociais

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Na última segunda feira, 23, o prefeito de Altamira publicou um decreto no qual anunciou as medidas de segurança a serem adotadas para enfrentar os possíveis efeitos da pandemia do COVID 19 no município. Além de suspender as atividades de escolas e creches, a prefeitura fechou até 31 de março estabelecimentos de lazer (bares, restaurantes, boates etc), esportivos (academias, ginásios etc) e o comércio em geral (exceto estabelecimentos de serviços essenciais, como feiras, supermercados, farmácias, postos de gasolina e outros). A população também passou a estar proibida de “permanecer ou circular nas praias, praças, parques, quadras poliesportivas e qualquer outro bem público de uso coletivo”.

As medidas, que seguem protocolos estabelecidos pelo governo do estado, foram recebidas com ceticismo pelos movimentos e organizações sociais, que as consideraram pouco eficientes para proteger as populações dos meios rurais e das periferias da cidade.  Mais além, lideranças comunitárias denunciam que serviços básicos, como fornecimento de combustível para remoção de doentes de comunidades ribeirinhas, recursos para postos de saúde, atendimento a comunidades afetadas pelas recentes enchentes e outros, são negligenciados de forma acintosa pela prefeitura.

Esta leitura, aliada à perspectiva de que as medidas restritivas de mobilidade nos espaços públicos, onde muitos trabalhadores e trabalhadoras informais ganham seu sustento, e de fechamento dos comércios, aprofundem ainda mais o processo de empobrecimento gerado pela construção de Belo Monte, levou organizações e movimentos sociais de Altamira a construir uma pauta comum de reivindicações, encaminhada nesta quarta, 25, às diversas instâncias do poder público. O documento exige medidas urgentes no setor da saúde, o reassentamento de ribeirinhos desalojados por Belo Monte, atendimento a pescadores e assentados urbanos, aos trabalhadores formais e informais, às populações indígenas e tradicionais, entre outros. Leia abaixo:

Carta das organizações sociais sobre o COVID 19 em Altamira
Nós, movimentos sociais, religiosos e religiosas e organizações não governamentais de Altamira nos unimos para exigir do poder público municipal, estadual, federal, dos
Ministérios Públicos Estadual e Federal, da empresa Norte Energia S.A, bem como de todos os órgãos públicos e do legislativo, medidas emergenciais, de curto, médio e longo prazos, para
enfrentar a maior ameaça a nossas vidas nesta época histórica: a pandemia do coronavírus. É determinante que todos assumam sua responsabilidade: poder público, instituições, empresas privadas e sociedade civil. Se um destes pilares faltar ou falhar, não conseguiremos mitigar a tragédia que se anuncia em Altamira, cidade mais violenta da Amazônia e região
profundamente afetada pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Sua participação, portanto, não é solicitada. Ao contrário, é obrigatória.

As pautas emergenciais são:

1) Sistema de Saúde
Como é sabido, Altamira tem um sistema de saúde pública precário por receber recursos insuficientes mesmo em tempos normais. Neste momento, a pandemia de coronavírus se
somará a um grave surto de dengue e ao recrudescimento da malária na região. Como será enfrentada a pandemia quando os casos de coronavírus se disseminarem? Quais são as
providências já tomadas? Quanto dos recursos emergenciais foram destinados para Altamira e como serão usados? Como se dará a participação da sociedade civil nessas decisões?

Diante do cenário de possível pressão sobre o sistema de saúde de Altamira, única cidade da Transamazônica que possui um Hospital Regional para atender casos de média e alta
complexidade, e que possui apenas poucos leitos de UTI, é importante que a prefeitura de Altamira, Governo do Estado, Ministério da Saúde e Norte Energia possam se organizar para
realizar ações emergenciais e estratégias de ampliação, manutenção e reforço do Hospital Regional, a partir da certeza de que haverá grande aumento da demanda de atendimento
devido ao coronavírus. Da mesma forma, será necessário o fortalecimento das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) que atendem a saúde básica. Sabemos que todos os casos mais graves e possíveis doentes da região da Transamazônica vão gerar expressivo aumento da demanda, nos hospitais Regional e do Mutirão, e não haverá leitos nem equipamentos suficientes para atender a todos.

Nesta reunião, a prefeitura, o governo do Estado do Pará e o Ministério da Saúde também devem apresentar as perspectivas de custeio do sistema de saúde em Altamira, visando cobrir todas as populações do município – urbanas, rurais, indígenas e ribeirinhos – nesse período de coronavírus. As medidas devem ser acompanhadas pelo MPE e pelo MPF. A cidade já está sem máscaras nas farmácias e com risco de cortes em suprimentos de saúde e insumos básicos de proteção, como álcool. É preciso que os governos assegurem que haja o constante suprimento de todos os itens necessários à saúde em toda a cidade durante os próximos meses.

2) Apoio especial direcionado às populações removidas pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte
É de conhecimento público que a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte ampliou a vulnerabilidade de várias populações e criou também vulnerabilidades que antes não existiam, principalmente com as remoções das famílias de suas casas para dar lugar ao lago da usina. Assim, é preciso que os seguintes casos sejam atendidos com prioridade e urgência:

a) Ribeirinhos – a expulsão de famílias ribeirinhas que viviam nas margens e nas ilhas do Xingu para os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) e outros bairros das periferias de Altamira colocam, hoje mais do que nunca, essas famílias em risco exponencialmente maior ao coronavírus e suas consequências associadas. O prometido reassentamento de todas as famílias identificadas pelo Conselho Ribeirinho em um Território Ribeirinho nas margens do Reservatório Xingu vem sendo adiado há mais de quatro anos. Se estivessem à beira do rio, estas famílias estariam mais protegidas da disseminação do vírus e totalmente protegidas da insegurança alimentar causada pela pandemia. Hoje, ao contrário, estão expostas nos RUCs e em outros lugares da cidade não só ao risco de contaminação, mas também a todas as outras consequências relacionadas à pandemia, entre elas a fome. É urgente que a empresa se mostre responsável e tome medidas emergenciais de mitigação diante de uma situação emergencial cujas consequências nefastas serão ampliadas por sua ação, omissão e atraso em cumprir suas obrigações. Só assim se evitará a morte de adultos e crianças de populações tradicionais deslocados para a construção da usina. Para isso, é preciso que se cumpram as determinações do licenciamento. O IBAMA já se pronunciou sobre a implantação do Território Ribeirinho, agora a empresa precisa agir.

Dessa forma, solicitamos que a Norte Energia avance imediatamente nos procedimentos técnicos para reassentamento das famílias, convocando o Conselho Ribeirinho, com o apoio do MPF, e que solicite, imediatamente, a nova Declaração de Utilidade Pública – DUP para a ANEEL, fundamental para que as áreas do território ribeirinho sejam adequadas para o reassentamento das famílias. Elas estão arcando com um ônus de muitos anos vivendo em condições precárias na cidade e precisam voltar para a beira do rio imediatamente, agora também para se protegerem da pandemia. A Norte Energia é responsável por essa situação de vulnerabilidade e precisa cumprir a condicionante da Licença de Operação.

Além disso, a situação das famílias ribeirinhas na cidade, que são em sua maioria pescadoras, é de extrema gravidade devido à situação difícil da pesca no reservatório Xingu. É preciso que a Norte Energia garanta uma ajuda com cestas básicas a todas as famílias identificadas pelo Conselho Ribeirinho que estão em grave risco de segurança alimentar.

Essa medida de garantia de alimentos, seja por cesta básica ou outros meios, deve ser estendida a todos os pescadores da cidade que vivem essa drástica situação de perda da atividade da pesca e estão em situação de vulnerabilidade, pescadores de Altamira e da Volta Grande do Xingu.

É preciso que o Ibama reconheça urgentemente e determine que a Norte Energia assuma seus compromissos com as mais de 200 famílias acima do reservatório que estão com o rio sem peixe e água imprópria para consumo, causando doenças nas pessoas.

b) Famílias ao redor da Lagoa, no bairro Jardim Independente 1 – as que ainda não foram realocadas, vivem hoje um surto de dengue, além de estarem enfraquecidas por todas as dificuldades de viver em condições absurdamente insalubres. É preciso que a Norte Energia S.A., com apoio da prefeitura, tome providências imediatas para garantir as condições de moradia para um confinamento adequado, determinadas pelas autoridades sanitárias, incluindo segurança alimentar e saneamento básico

c) População dos RUCs – as diversas famílias que hoje ocupam os RUCs não conseguiram recompor seus meios de sustento devido ao fato de terem sido deslocadas do centro, onde tinham fácil acessibilidade ao rio e aos serviços públicos, para regiões distantes da cidade que não possuem condições de transporte público adequadas, além de toda a rede de comércios e subsistência ter sido rompida. A insegurança alimentar tornou-se um problema crônico para parte desta população que hoje ainda conta com altos índices de desemprego. Com a pandemia, o que é crônico se tornará também agudo. A Norte Energia S.A., causadora deste problema, deve garantir, junto ao Governo, a segurança alimentar das famílias vulneráveis durante o período de duração da pandemia, seja com cestas básicas ou de outras maneiras.

A falta de água é um problema gravíssimo, que se tornou crônico em parte dos RUCs e outros bairros da cidade que foram criados, também os ribeirinhos que estão na área do reservatório e acima estão enfrentando problemas de acesso a água de qualidade. Famílias inteiras passam semanas sem água, que também chega a faltar nos postos de saúde. A solução imediata deste problema é imperativa para enfrentar a pandemia do coronavírus. Norte Energia e governo devem apresentar uma proposta emergencial junto ao MPF e MPE para assegurar que todas as famílias tenham água potável em suas casas.

3) Reforço de segurança aos povos e comunidades tradicionais em seus territórios
É fundamental que o Governo, em todas as instâncias, assegure o retorno e a manutenção de todos os indígenas residentes nas Terras Indígenas do Médio Xingu e ribeirinhos, moradores das Unidades de Conservação em seus territórios, para que estejam longe da cidade e dos riscos de contaminação. Para isso, é fundamental que sejam impedidas as entradas de pessoas e que o governo apoie qualquer necessidade desses povos nas áreas protegidas durante o período de pandemia.

4) Trabalho formal e informal
O isolamento é fundamental para combater a pandemia, como anunciaram as autoridades de saúde pública e a Organização Mundial da Saúde. Isso só será possível se os empresários, comerciantes e também o Estado cumprirem suas obrigações constitucionais, trabalhistas, morais e éticas. É inaceitável que funcionários sejam demitidos e colaboradores dispensados num momento em que esse ato significa condená-los à fome e possivelmente à morte. Um acordo entre empresários e empregados, mediado pelo Estado e pelos sindicatos, é imperativo.

O mesmo vale para os informais que fazem trabalhos regulares em casas, condomínios, empresas e comércios, mas não têm carteira assinada. No caso dos informais que trabalham nas ruas ou por conta própria, é preciso que o Estado e o Município informem quais medidas serão tomadas para que estas pessoas não sejam condenadas à fome e à doença, para além do plano claramente deficiente anunciado pelo governo federal.

5) Trabalhadores da área de limpeza pública
É flagrante o fato de que os garis que cuidam da comunidade recolhendo nosso lixo e limpando nossas ruas estão trabalhando neste serviço essencial sem nenhuma proteção e condições especiais de trabalho. É fundamental que o município se comprometa imediatamente a mudar essa situação e se responsabilize pela segurança destes trabalhadores, assim como de suas famílias, decretando uma política emergencial de apoio à saúde e garantindo condições de trabalho com salubridade a essas famílias.

6) Presidiários e familiares de presidiários
Em julho de 2019, Altamira foi palco do segundo maior massacre do sistema penitenciário da história do Brasil. As causas foram amplamente abordadas pela imprensa nacional e internacional. Neste momento, a situação dos presos é sabidamente insalubre. Eles podem se tornar as pessoas mais frágeis numa pandemia, caso providências imediatas não sejam tomadas. Cruzar os braços é condenar a população carcerária ao extermínio. É necessário um plano imediato para proteger os presos do coronavírus e atuar junto aos familiares de presidiários, a maioria em situação de grande vulnerabilidade.

7) Trabalhadores da saúde e de suas famílias
Em tempos de pandemia, os trabalhadores da saúde são aqueles que não podem se isolar para protegerem a si mesmos e a suas famílias. Por isso, é necessário um plano imediato para esta categoria. Por um lado, garantir sua proteção, com todos os equipamentos, máscaras, luvas e o que mais for necessário para evitar sua contaminação, que coloca em risco a eles, suas famílias e todo o sistema de saúde. Por outro, garantir o cuidado de suas crianças enquanto eles não estão presentes por estarem trabalhando, já que ficar com os avós, grupo de maior risco, é desaconselhado.

8) População migrante
A população de Altamira não é composta apenas por aqueles com residência fixa na cidade, mas também por aqueles que acabaram de chegar ou estavam de passagem e foram surpreendidos pela pandemia. São indivíduos e famílias inteiras que foram obrigados a deixar seus lugares de origem, devido a monstruosas dificuldades, em busca de uma vida melhor, como fizeram no passado tantas pessoas que hoje constituem a sociedade de Altamira. Originários, como sabemos, só os indígenas. É dever de todos acolher essas pessoas que fugiram de uma tragédia para encontrar outra maior. Medidas urgentes para proteger esta população precisam ser tomadas para que a busca por uma vida melhor não tenha um desfecho trágico por obra do descaso e da xenofobia do poder público, das instituições e da sociedade.

9) Energia elétrica, impostos e pagamentos
É imprescindível que a energia elétrica seja gratuita para as famílias de baixa renda enquanto durar a pandemia. Grande parte dessas famílias hoje vivem a crise do desemprego e da falta de recursos para alimentação básica e pagam contas caras de energia, seja nos RUCs ou em outros bairros. Na região que abriga a maior hidrelétrica da Amazônia, é inadmissível que a população sofra com cortes de luz por impossibilidade financeira de pagar as contas. Também é obrigatório que o pagamento das contas de energia elétrica e outras contas de serviços essenciais, assim como impostos, seja adiado até uma data posterior ao final da pandemia, para que o conjunto da população tenha tempo para recompor sua vida e seja capaz de voltar a cumprir com suas obrigações.

10) Royalties de Belo Monte
Demandamos da prefeitura que os recursos advindos dos royalties da usina de Belo Monte sejam utilizados pela prefeitura com prioridade para as ações e demandas apontadas nesta carta para o combate ao coronavírus. A prestação de contas do uso desses recursos deve ser feita publicamente, com convocatória da população, de forma ampla e transparente. Encerramos essa carta lembrando que, no momento em que algo de tal gravidade ameaça a espécie humana no planeta, precisamos nos tornar melhores do que somos. Só assim teremos alguma chance. Se nos tornarmos piores, possivelmente viveremos o caos, porque ninguém aceitará morrer como gado. Nenhum dos poderes e das instâncias envolvidas pode se omitir num momento como esse nem deixar quem mais precisa à margem. Precisamos que antigos desentendimentos e desacordos sejam superados e que todas as forças se unam em nome do bem comum e da vida dos mais frágeis entre nós.

Queremos reiterar, ainda, que não há tempo a perder. Tudo indica que, muito em breve, o vírus estará disseminado também em Altamira, a alimentação se tornará cada vez mais difícil para as famílias mais vulneráveis, o sistema de saúde já precário se tornará insuficiente e caótico. Temos tempo mínimo para fazer o máximo. O que fizermos definirá o que será Altamira no futuro próximo. Definirá ainda mais: que tipo de humanos seremos quando
conseguirmos chegar ao outro lado desta pandemia.

Altamira, 25 de março de 2020

Assinam esta Carta:
Movimento Xingu Vivo para Sempre
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Campo e Cidade
Centro de Formação do Negro e Negra da Transamazônica e Xingu – CFNTX
Coletivo de Mulheres do Xingu
Coletivo de Mulheres Negras Maria Maria
Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses
Associação de Mulheres Altamira e Região
Mutirão Pela Cidadania
Movimento Negro de Altamira
Sintepp Regional Xingu
Sintepp Subsede Altamira
Fundação Viver Produzir e Preservar
Associação de Moradores da Reserva Extrativista do Rio Xingu – AMOMEX
Associação de Moradores da Reserva Extrativista do Rio Iriri – AMORERI
Associação de Moradores da Reserva Extrativista do Riozinho do Anfrísio – AMORA
Associação Indígena Kirinapan
Fórum em Defesa de Altamira
Oficina Território Livre
Diocese de Xingu-Altamira
Instituto Socioambiental
Setor Social da Diocese de Xingu
Comitê REPAM Xingu
Pastoral Indigenista Diocese do Xingu
Conselho Indigenista Missionário Norte II
Pastoral Diocesana Carcerária
Comissão Diocesana de Justiça e Paz
Comissão Pastoral da Terra
Conselho Indigenista Missionário CIMI/Xingu
Sociedade do Verbo Divino (SVD) / Missionários do Verbo Divino
Irmãs Franciscanas de Ingolstadt
Irmãs de Notre Dame – Comunidade Anapu
Adoradoras do Sangue de Cristo
Irmãs franciscanas penitência caridade cristã

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