Por Verena Glass – No dia 8 de abril, a Plataforma DHESCA (defesa dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) lançou o relatório sobre a nova configuração da violência em Altamira, resultante da uma missão emergencial no município realizada em outubro de 2019. O foco das investigações foi o massacre no Centro de Recuperação Regional de Altamira (CRRALT), ocorrido em julho e que vitimou 64 detentos sob custódia do Estado, bem como a situação das populações que hoje vivem nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) após terem suas terras desapropriadas pela Norte Energia no período de construção da hidrelétrica de Belo Monte.
A Plataforma DHESCA é uma rede formada por mais de 40 organizações e articulações da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção e defesa dos direitos humanos, incidindo em prol da reparação de violações. Entre as suas funções está a elaboração de relatórios sobre casos de violações de direitos de diversas naturezas, no sentido de investigar e sintetizar os problemas, elaborar recomendações e apresentar as conclusões às diversas instâncias nacionais e internacionais competentes.
De acordo com o sociólogo Luiz Fabio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará e relator da Plataforma DHESCA, a realização da missão emergencial em Altamira se deu em função de demandas apresentadas pelos movimentos sociais locais, familiares dos presos mortos no CRRALT e pelo próprio Ministério Público Federal.
Em relação ao massacre dos detentos no Centro de Recuperação, a missão levantou que a administração do presídio havia sido avisada da eminência de uma rebelião com antecedência, mas não tomou nenhuma providência. No dia do massacre, quando muitos presos foram decapitados, outros morreram queimados em suas celas e outros ainda arrastados para a quadra, fotografados e depois executados por ordem do comando da facção local Comando Classe A, em retaliação aos afiliados da facção Comando Vermelho, nem as forças do Estado nem a administração penitenciária interviram para evitar a tragédia.
“Conforme relatado pela própria diretora da unidade prisional, a administração do presídio não tinha controle dos blocos [onde estavam divididos os presos por facção], realizando um trabalho incoerente à sua responsabilidade pela vida e pela integridade física e psicológica de pessoas em cumprimento de pena ou que aguardam julgamento”, diz o relatório.
Paiva destaca que as principais conclusões às quais a missão chegou foram que:
– O Estado não teve capacidade de responder ao massacre, não tinha nenhum protocolo de segurança e assistiu acontecer sem intervir
– Quatro presidiários foram mortos durante o transporte em veículo do próprio Estado, o que demonstra a completa inoperância e irresponsabilidade pelas vidas sob seu cuidado
– Não houve nenhuma medida em relação aos responsáveis, a diretoria do presidio segue em suas funções
– Os eventos são tratados por agentes públicos da área de segurança e de justiça como algo “circunstancial”
Para o relator, há algo grave por trás destas constatações: sem nenhum controle dos processos internos do presídio, que sofre de superlotação, abriga presos temporários e em cumprimento de medidas provisórias, sem nenhum tipo de medida de reeducação ou proteção interna, o detento que chega às instalações é obrigado a se submeter à proteção de uma facção para evitar torturas, estupros e outros abusos. Indivíduos que, por circunstancias diversas, se envolveram em algum delito mas não têm nenhuma ligação com o crime, passam a ser obrigados a se ligar a ele para sobreviver. E, quando há disputas entre facções, as primeiras vítimas são estes presos.
“Quem oferece proteção contra violação na prisão é facção, não Estado. Não há reflexão sobre as condições que levam a essa ligação”, afirma Paiva. Com a construção de Belo Monte, a expulsão de milhares de famílias de suas terras, a chegada de centenas de homens de fora em busca de trabalho, a desestruturação dos equipamentos e serviços públicos e, por fim, o crescimento do desemprego, o crime organizado encontrou solo fértil para o desenvolvimento de atividades ilegais. Floresceu o mercado de drogas, sexo e armas, e entre os desterritorializados, violados por Belo Monte e abandonados pelo Estado, pequenos serviços ligados a este mercado passaram a ser uma fonte de renda. “Entre os presos, muitos eram aviõeszinhos, sem antecedentes criminais, trabalhadores ocasionais desses mercados ilegais. Então o Estado pega essa gente com envolvimento periférico e trata como traficante”, afirma o pesquisador.
Reassentamentos Urbanos Coletivos
A desestruturação do tecido social pós-início das obras de Belo Monte e toda a violência estrutural resultante da instalação da hidrelétrica na região trouxeram uma profunda mudança na vida das populações que foram arrancadas da beira do rio e jogadas na periferia de Altamira nos chamados RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos). Uma delas foi a imposição de uma nova relação com a violência.
“Antes de Belo Monte, os ribeirinhos viviam próximos ao rio, tinham uma vivencia muito diferente com o meio ambiente, com suas comunidades. Agora, a juventude está tendo uma vivencia muito distinta da geração anterior. É uma juventude urbana, e os problemas sociais da implementação de um capitalismo sem base social é determinante”, explica Paiva. Segundo ele, da forma em que foram constituídos os RUCs, sem nenhum planejamento urbano, com casas que já estão se desfazendo, sem serviços públicos, sem cultura comunitária nenhuma, as pessoas perdem as relações afetivas com seu entorno. “Esses jovens não conseguem se socializar de forma comunitária, como era tradição de seus pais, não têm afetos, não têm perspectivas, não têm futuro, e aí a presença de mercados ilegais passam a oferecer alternativas”.
O que a missão detectou nos RUCs enquanto nova periferia foi o surgimento de uma nova dinâmica criminal pós-deslocamento das populações de seus territórios originários. Ou seja, a atividade de sobrevivência não é mais a pesca, é ser “aviãozinho”, pequeno fornecedor de drogas. “Detectamos que essas dinâmicas estão fortemente presentes. Isso e uma situação de grande incerteza sobre futuro. A tendência é que os RUCs se transformem em uma periferia de outro tipo, com abertura de espaço para a entrada da criminalidade, que pode oferecer outras formas de renda onde a pobreza se generalizou. Os coletivos criminais ocupam cada vez mais espaço de produção de oportunidades para jovens”, conclui o relator.
Por fim, outro elemento que marcou a investigação foi a constatação de que a violência, tanto no presidio quanto na periferia de Altamira, tem uma relação estreita com as condições raciais das vítimas. “Como em todo o Brasil, a maioria absoluta dos presos e dos periféricos é negra, ou pelo menos não branca. Pode-se argumentar que a população amazônica é predominantemente preta ou parda; ou cabocla; não branca. Mas isso não se aplica à elite. A diretoria do presidio é branca. A diretoria da Norte Energia é branca, os membros dos Ministérios Públicos, das Defensorias, são brancos. Então é muito cabido falar em genocídio negro e racismo quando presidiários e periféricos são negros, não brancos”, diz Paiva.
Recomendações e encaminhamentos
Para Paiva, o que ficou claro ao fim da missão é que tanto o Estado e a administração penitenciária, quanto a empresa Norte Energia, empreendedora de Belo Monte, devem ser responsabilizadas pela situação de violência que atinge as populações mais vulneráveis da região.
Nesse
sentido, o relatório traz 16 recomendações para as diversas instancias
competentes, como:
– Investigação do massacre, dos crimes e assassinatos cometidos sob a tutela do
Estado, além da responsabilização dos envolvidos
– Reparação (material e moral) para as famílias dos presos mortos.
– Diagnóstico socioeconômico dos impactos da UHE de Belo Monte para revisão de
danos morais, ambientais e econômicos do empreendimento na região, com previsão
de readequações de políticas, medidas indenizatórias e assistência social às
comunidades atingidas.
– Diagnóstico do processo de encarceramento, com estudo qualificado sobre a
qualidade do trabalho de operadores de segurança e justiça para avaliação e
monitoramento de processos geradores de violações de direito que culminam na
lotação de unidades prisionais.
– Criação de programas de apoio, assistência social e psicológica para famílias
de pessoas presas em situação de vulnerabilidade, com enfoque no suporte
material e subjetivo a mulheres, crianças e jovens.
Sobre os encaminhamentos práticos do relatório, a advogada Melisanda Trentin, membro da coordenação executiva da Plataforma, explica que o documento será encaminhado oficialmente a várias instancias.
“Geralmente, após a conclusão dos relatórios, fazemos um lançamento local e um nacional, mas com a pandemia do Covid 19 optamos por fazer um debate virtual no dia 8 de abril. Esta semana, oficiamos as instituições locais que foram entrevistadas durante a missão: os Ministérios Públicos, as Defensorias, OAB, a diretoria do presídio, todos para os quais direcionamos as recomendações do relatório, e de quem estamos exigindo a tomada de providencias. Isso está sendo feito esta semana. Mas também vamos oficiar instituições nacionais, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos. O terceiro passo é internacionalizar o relatório, que será traduzido e enviado as relatorias oficiais da ONU, bem como à Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, explica Trentin.
Outo objetivo, prossegue, é que os movimentos sociais tenham no relatório um instrumento de pressão em suas lutas por direitos. “É um roteiro para a exigibilidade de direitos”.