Por Verena Glass/Fotos Lorena Curuaia – A pequena comunidade Yawá, localizada na região conhecida como Jericoá, na Volta Grande do Xingu, tem hoje 19 famílias. São indígenas Curuaia, mas a área ainda não foi demarcada nem incluída no Componente Indígena do Projeto Básico Ambiental da hidrelétrica de Belo Monte, apesar de sofrer os graves impactos da usina, como a seca prolongada do rio do qual eram diretamente dependentes por terem na pesca a sua principal fonte de alimentação. Belo Monte chegou, os peixes sumiram, e hoje o sustento depende basicamente das roças que cada família cultiva de acordo com as condições de solo de seus lotes.
Yawá é o nome Curuaia de dona Odete, matriarca da comunidade e avó de Lorena, que hoje estuda medicina na Universidade Federal do Pará em Altamira. Apesar de viver na cidade boa parte do Tempo, Lorena é a segunda liderança em Yawá, e foi de uma conversa com a avó que brotou uma ideia-ação. “Minha avó me perguntava como estava aqui na cidade, porque via muita notícia ruim de pessoas passando fome; e aí eu perguntei: e se a gente doasse um pouquinho do que a gente tem? Eu lembro que minha vó contava que houve um tempo em que tinha só um ovo, que ela dividia para todos os netos. Então veio essa ideia de dividir o pouco que a gente tinha, porque várias famílias da Volta Grande estavam passando por dificuldades”.
No último domingo, 4, seis famílias de Yawá abraçaram a ideia a partiram para a colheita. Milho, abobora, macaxeira, pimenta, banana, limão. Juntaram a isso um pouco de coisa comprada, feijão, arroz, biscoito, embalaram tudo e ajeitaram no carro da amiga Julianna Costa – a comunidade não tem veículo, conta Lorena, e o rio, que era sua estrada, hoje não presta para navegar.
Dias antes, Lorena havia participado de uma reunião de representantes dos Núcleos Guardiões do rio na sede do Movimento Xingu Vivo, onde foram compartilhadas e denunciadas as preocupações das diversas comunidades com as alterações causadas por Belo Monte na região, problemas que se avolumam agora com a pandemia do Covid 19. Uma das áreas mais afetadas pela fome, discutidas neste encontro, foi a Comunidade Bambu, onde moram diversas famílias de pescadores cercadas por grandes fazendas e que, sem terras para o plantio e sem peixes no Xingu, estão em situação de extrema vulnerabilidade.
Foi para la que os Curuaia mandaram as primeiras doações. Não foi muito, porque, como havia dito Lorena, tinham pouquinho para compartilhar. Mas sete famílias do Bambu receberam, além de alimento, uma tremenda solidariedade que, para os indígenas, é o que vai permitir a sobrevivência da esperança.
Além do Bambu, também receberam doações a APAE de Altamira, a intituição de acolhimento Casa da Irmã Serafina e vários imigrantes venezuelanos que perambulam pela cidade. “Doamos para os venezuelanos por também serem indígenas, e por estarem em uma situação muito ruim, com aquelas crianças nos sinais…”, explicou Lorena.
Impacto político
Desde o primeiro
encontro dos Núcleos Guardiões do Xingu, ocorrido em novembro de 2019, a urgência
da auto-organização e da construção de redes de cuidado entre as comunidades
atingidas por Belo Monte e ameaçadas pelo projeto da mineradora canadense Belo
Sun, que seria instalado a apenas 10 km do paredão da usina sobre as terras de
assentados e garimpeiros artesanais da vila e do Projeto de Assentamento
Ressaca, vem ganhando vulto.
Com o avanço do novo coronavirus em Altamira – até esta terça, 5, haviam sido confirmados 24 casos de contaminação e um óbito -, as comunidades ribeirinhas e pescadoras têm tido dificuldade de circular, comprar alimentos na cidade, vender sua produção e auferir renda. Por isso, afirma Lorena, é tão importante que o cuidado se dê entre as próprias comunidades. “Acho importante construir a solidariedade com outras comunidades porque nós somos ligados. Somos ligados pela terra, somos ligados pela floresta, somos ligados por um rio. A gente conhece muito bem a dificuldade do outro”. E esta ação entre os territórios gera autonomia tanto frente aos poderes políticos quanto às empresas, que anunciam grandes doações, mas que não têm cumprido com o mínimo de obrigações legais em relação a esta população. “Isso é errado”, desabafa Lorena
De acordo com Ana Barbosa, educadora do Movimento Xingu Vivo e uma das responsáveis pelo apoio à organização dos Núcleos Guardiões, a missão destes coletivos é exatamente recuperar as práticas de cuidado que se perderam nos processos de colonização e na imposição da lógica do capital. “Na relação entre o ser humano e natureza, na recuperação das ancestralidades, é que vamos encontrar o caminho de volta. Nós estamos com esses elementos potentes na mão. Então a iniciativa do povo Curuaia é muito significativa para nós, porque eles são um povo abandonado pelo sistema. É imensamente importante a solidariedade desse povo, que pega os produtos que cultivou e leva para uma comunidade necessitada. É um povo não reconhecido, por vezes criminalizado… e é isso que os Núcleos estão apontando nesse momento: é dos grupos excluídos, marginalizados, que brota a esperança, a solidariedade. E assim se recuperam os sentimentos humanos que se perderam nessa sociedade ocidental capitalista”.
Segundo Ana, as iniciativas de cuidado por vezes passam até despercebidas, mas estão presentes na cultura dos territórios. “Por exemplo, outra região onde temos um Núcleo Guardião, o Lote 96 do travessão do Flamingo, em Anapu, também na Volta Grande do Xingu: lá, as famílias de agricultores mais antigas têm o costume de presentear as que vem chegando com um casal de galinha, de porco, com sementes, para que eles possam começar a vida com algo concreto, um quintal produtivo”.
“O que eu diria para os outros Núcleos Guardiões”, resume Lorena, “é que às vezes a gente tem muito; a gente acha que tem pouco, mas tem muito. Saber dividir é saber também manter a vida dos demais. Por que a gente luta pela terra, por que a gente luta por melhores condições da água da Volta Grande do Xingu? É justamente porque a gente valoriza esta terra. A gente planta nela, a gente se alimenta dela, e pode alimentar diversas outras pessoas se valorizarmos as matas, os rios, o solo e a mãe natureza”.