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Regulação da CFURH: controle social e destinação para as famílias afetadas pela usina de Belo Monte

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Desde que a usina de Belo Monte começou a gerar energia comercialmente, em abril de 2016, em concordância com a legislação nacional a Norte Energia passou a pagar a Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos (CFURH), os chamados royalties de Belo Monte. Esta compensação é calculada mensalmente com base na energia gerada (7% do total de energia gerada é multiplicado pela Tarifa fixada pela Agência Nacional de Energia Elétrica). Do total deste recurso, 0,75% são destinados exclusivamente para o Ministério do Meio Ambiente para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Os demais 6,25% são repartidos entre os entes da federação: 65% são destinados aos municípios que tiveram seu território alagado por reservatórios de usinas hidrelétricas; 25% são destinados para estado do Pará; e 10% permanecem com a União, sendo distribuídos entre o Ministério do Meio Ambiente (3%), o Ministério de Minas e Energia (3%) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (4 %) [Lei 13.661/2018].

No caso de Belo Monte, os municípios que tiveram área alagada e que recebem essa parcela são Altamira, Vitória do Xingu e Brasil Novo:

Por ter a maior área alagada pela hidrelétrica, Altamira recebe a maior fatia do CFURH de Belo Monte. O dinheiro é depositado nos cofres da prefeitura dois meses depois da arrecadação, ou seja, a partir de junho de 2016 Altamira começou a receber todos os meses este recurso.

No ano de 2019, o valor dos royalties recebido pelo município foi de R$ 45.081.368,00. No primeiro semestre de 2020 a prefeitura já recebeu R$ 39.793.514,71.  Ao todo, desde o início da operação da usina, entraram nos cofres da prefeitura de Altamira R$ 121,460,652.33[1]. Para se ter uma dimensão do que isso significa, em 2019 de cada R$ 10 reais gastos, R$ 4 vieram dos royalties de Belo Monte.

Este é um recurso público que custa muito caro aos altamirenses, uma vez que Belo Monte alterou profundamente as condições de vida e existência na região. Com a construção da usina, mais de trinta mil pessoas tiveram que sair de suas casas, perdendo não só sua moradia, mas a terra de onde tiravam seu sustento; com o barramento do rio, a atividade pesqueira, muito importante na região, foi profundamente afetada, fazendo com que muitas famílias perdessem sua principal fonte de renda. Os novos bairros que foram surgindo, tanto a partir dos reassentamentos urbanos construídos pela Norte Energia, como diversos loteamentos privados, fizeram crescer periferias desestruturadas, onde muitas famílias ficaram sem acesso a equipamentos públicos de saúde e educação, ou transporte público adequado. Altamira também se tornou nos últimos anos uma das cidades mais violentas do país, oferecendo poucas oportunidades e projetos de futuro para sua juventude.

Com uma população estimada em 114.594 pessoas (IBGE, 2019), Altamira contabiliza hoje 53.325 pessoas (43,5% da população) que tem um rendimento mensal inferior a um salário mínimo; sendo que 43.278 pessoas vivem em situação de pobreza e extrema pobreza. De cada 10 habitantes de Altamira, 4 são pobres ou extremamente pobres, ou seja, têm uma renda mensal inferior a R$ 178[2].

A situação socioeconômica das famílias de Altamira, já bastante precária em função de Belo Monte, tem se agravado com a pandemia do novo Coronavírus. A recessão econômica e a imposição de restrições na mobilidade e nas atividades produtivas aumentaram os níveis de desemprego e a desigualdade social. As medidas de carácter emergencial adotadas pelos governos federal e municipal, voltadas a incentivar o distanciamento social, beneficiaram apenas uma pequena parte da população em situação de vulnerabilidade, e são de longe insuficientes para garantir uma vida digna ou o acesso a políticas públicas efetivas e de longo prazo.

Diante deste contexto, e do ônus que recai sobre a população da cidade de Altamira pela instalação da usina de Belo Monte, defendemos a urgente regulação dos recursos públicos oriundos dos royalties de Belo Monte. A dívida de Belo Monte com o povo do Médio Xingu é enorme e perene, e o pouco que devolve à região na figura jurídica da CFURH, deve ser destinado prioritariamente às suas vítimas. Neste sentido, acreditamos que cabe a sociedade civil organizada promover mecanismos que garantam a transparência e o controle popular sobre o uso dos royaltiesde Belo Monte.

Por que regular

O CFURH é um recurso “não carimbado”, ou seja, não existe uma legislação que define onde deve ser aplicado e quais as áreas prioritárias para seu investimento[3]. Governos estaduais e municipais tem ampla autonomia para definir a destinação do recurso. Mas em Altamira, a ausência de transparência sobre as finanças municipais como um todo, e sobre a destinação do CFURH, em particular – ambas uma obrigação legal do governo municipal – torna seu destino incerto.

Regular o uso ou destino desse dinheiro é importante por vários motivos:

  1. Enquanto não houver uma regulação obrigando a prefeitura a classificar toda e qualquer despesa que tenha como fonte de pagamento os royalties de Belo Monte, não será possível saber para onde está indo esse dinheiro. Pode parecer complicado, mas não é. Se a prefeitura de Altamira não mostra os números como deve, é porque isto é muito conveniente. Ou seja, sem transparência, a população não tem condições de questionar as escolhas políticas de uso desse dinheiro;
  • Mas não adianta somente ter transparência, é preciso ir além. É necessário que a população discuta e participe na definição sobre quais devem ser as prioridades na aplicação dos royalties;
  • Uma regulação que assegure a transparência e a escolha das prioridades e do destino destes recursos é também uma forma de discutir com a população o que Belo Monte trouxe de impactos, que não foram nem de longe compensados no processo de licenciamento, deixando um rastro e destruição e miséria ambiental, social e econômica

Em resumo, o mais importante é assegurar, através da regulação, que as populações mais afetadas por Belo Monte sejam diretamente beneficiadas com o recurso da CFURH. É essencial que as milhares de famílias que se encontram abaixo da linha da pobreza no município de Altamira tenham condições de construir seus planos de vida de forma digna, que ribeirinhos, pescadores, indígenas, pequenos agricultores e assentados nas áreas rurais, e as populações deslocadas para as periferias da cidade, tenham prioridade na destinação dos royalties; que seja assegurado, com este dinheiro, possibilidades de produzir, e de acesso à saúde e educação de qualidade e em concordância com as especificidades de cada realidade.

Como regular

A regulação do uso dos royalties de Belo Monte significa, em poucas palavras, garantir por Lei municipal a completa transparência e também o controle social sobre o destino deste recurso.

A transparência já deveria estar garantida por meio da Lei Complementar Nº 131 de 2011, pela qual todos os municípios do Brasil são obrigados a disponibilizar em sua página oficial os dados da execução orçamentária. O problema é que, como não existe um controle mais atento por parte dos Tribunais de Conta Municipais, no caso do Pará as prefeituras publicam as informações de um modo pouco claro e de difícil compreensão para os cidadãos.

Nesse sentido, a regulação dos royalties de Belo Monte deve incluir critérios para tornar públicos o volume e a destinação deste recurso. No entanto, além da transparência é preciso que seja oficializado um controle social do processo. Para uma justa aplicação dos royalties de Belo Monte é necessário que a regulação garanta, por lei, que haverá discussão pública sobre as prioridades para a destinação da CFURH, bem como um mecanismo de controle social.

Para que a população possa escolher o destino deste recurso, e acompanhar sua execução, é necessária a criação de uma lei municipal. Precisamos trabalhar e construir um projeto de lei que deve prever a regulamentação do recurso (ou seja, qual será sua destinação), bem como a criação de uma instância de controle social que possa decidir sobre sua aplicação e acompanhar sua execução. Neste sentido, a regulação da CFURH deve ser acompanhada da criação de um Conselho Popular: um conselho deliberativo que possa definir, com poder decisório, o emprego deste recuso. Se as áreas prioritárias para a população de Altamira são saúde e educação, o projeto de lei deve estabelecer porcentagens fixas para estes setores.

Fundo popular de fomento à produção

A usina de Belo Monte alterou profundamente a existência dos xinguaras, a população está diante do desafio de reconstruir um novo modo de vida que volte a lhe garantir dignidade e perspectiva de presente e futuro. Mas, parceiro do empreendimento que tanto tirou, o Estado é corresponsável por esta reconstrução, e precisa garantir que quem é da terra tenha terra, e que nela possa produzir; quem é do rio tenha direito ao rio, e nele possa desenvolver suas atividades; quem é da cidade tenha acesso a ela e nela possa viver e trabalhar.

Para que a população de Altamira possa encontrar meios para desenvolver projetos de geração de renda, projetos culturais ou educativos, que garantam sua autonomia, soberania alimentar, reconstrução de seus projetos de vida e bem viver, uma porcentagem dos roylaties de Belo Monte deve ser destinada a criação de um Fundo Popular de fomento à produção.

A criação de um Fundo Popular, destinado as famílias e comunidades locais, e não pessoas jurídicas, tem por objetivo fundamental garantir à população de baixa renda o acesso a um financiamento a fundo perdido para projetos familiares ou comunitários. Os projetos deverão contar com o acompanhamento de um comitê do Conselho Popular, criado especificamente para este fim, e com um processo simplificado de prestação de contas, baseado na demonstração da execução das atividades previstas e na demonstração da aplicação dos recursos.

 Caminhos para regulação e construção do Fundo

A criação de um Projeto de Lei Municipal é um importante instrumento para forçar o poder público a assumir obrigações de interesse local em favor da população, neste caso, um mecanismo legal para regular a destinação do CFURH e criar um Conselho Popular para sua gestão.

Para construir este projeto de lei realmente democrático, as organizações da sociedade civil, os movimentos sociais e a população afetada pela usina de Belo Monte devem ser escutados no processo de regulação da destinação e controle popular do CFURH. Há anos estamos discutindo esta pauta e pressionando a Câmara Municipal para dar a devida transparência à utilização deste recurso; é hora de darmos um importante passo adiante e participar da elaboração de uma norma legal que proteja os direitos e interesses da população de Altamira.

A partir desta construção, será possível consolidar as propostas para a regulação do recurso e sua destinação para os setores prioritários, e consolidar um projeto de lei que garanta a criação de um Fundo Popular e de um Conselho Popular de gestão e controle social do CFURH.


[1]     Os valores repassados aos municípios e estados, tanto os valores mensais, como anuais, bem como os repasses previstos, estão disponíveis para consulta no site da ANEEL [http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/cmpf/gerencial/].

[2]     Estes dados foram extraídos do Cadastro Único do governo federal e podem ser consultados na plataforma: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/cecad20/tab_cad.php

[3] A lei que regulamenta o CFURH (Lei 9.648/1998, alterada pela lei 13.360/2016) não regulamenta sua destinação, apenas estabelece que o recurso não pode ser utilizado para o pagamento de dívidas e de pessoal do quadro permanente do município, permitindo, contudo, três exceções: pode pagar dívida se o credor for a União e suas entidades; pode usar o recurso para custear despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, especialmente na educação básica pública em tempo integral; pode também utilizar o recurso para capitalização de fundos de previdência.

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