TRF1 derruba decisão que garantia água para a Volta Grande do Xingu. MPF deve recorrer

De acordo com o desembargador - que acatou um recurso da União e do Ibama -, pesaram na decisão argumentos como supostos prejuízos financeiros da Norte Energia, e a crise energética do país.

Lorem Impsum Dolor

Por Verena Glass – O vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), desembargador Francisco de Assis Betti, derrubou, em 26 de julho, a liminar que cancelou o termo de compromisso entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Norte Energia, concessionária da hidrelétrica de Belo Monte, que previa o desvio de 80% das águas da Volta Grande do Xingu para as turbinas da usina.



A liminar havia sido concedida pela Justiça Federal em Altamira em atendimento à uma Ação Civil Pública do Ministério Público Federal, que exigia água suficiente para a sobrevida do rio, da fauna e da flora na Volta Grande. A ACP também cobrou o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige que comunidades indígenas e tradicionais sejam consultadas antes de tomada qualquer medida que afete seus modos de vida

De acordo com o desembargador, que acatou um recurso da União e do Ibama, pesaram na decisão contrária à Volta Grande do Xingu e à população ribeirinha argumentos como supostos prejuízos financeiros da Norte Energia e a crise energética do país. Assim, volta a valer o Hidrograma B de Belo Monte, que libera apenas 20% da água da vazão normal para a Volta Grande e deverá acarretar que, por mais um ano, a reprodução dos peixes neste trecho do Xingu seja inviabilizada.

Falta de água na Volta Grande: pescadores encalhados e sem peixes (imagem: Mauro Suzuki)

“Essa decisão é tão absurda que ficamos até sem palavras. Está mais que comprovado, por estudos de especialistas independentes, de técnicos do próprio Ibama e de peritos do MPF, que, com esse hidrograma B, a Volta Grande vai morrer, e com ela os animais e as plantas que precisam de água para se reproduzir. E claro, o povo todo que vive na beira do rio. Essa decisão do TRF1 é tão criminosa quanto o acordo que o Ibama tinha feito com a Norte Energia, e que foi derrubado pela Justiça de Altamira. Parece que esse desembargador só ouviu as mentiras do Ibama e da Norte Energia, e trocou a vida de milhares de famílias beiradeiras pelo lucro que a Norte Energia disse que podia perder”, indignou-se Antonia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo.


Pescadores de Belo Monte do Pontal: direito à Consulta é garantido pela Convenção 169 da OIT (foto:Verena Glass)

Consulta às populações tradicionais

Na Ação Civil Pública que questionou a autorização que o Ibama concedeu à Norte Energia para que desvie quase toda a água da Volta Grande para as turbinas de Belo Monte, o MPF explicava que, independentemente de qualquer outro procedimento, debate técnico, político ou jurídico sobre o uso das águas, é dado que, de acordo com a Convenção 169 da OIT, as comunidades tradicionais (indígenas, ribeirinhos e pescadores) têm direito a reivindicar a Consulta Livre, Previa e Informada antes que seja tomada qualquer decisão que afete seus modos de vida. E diminuir a vazão da Volta Grande é, sem sombra de dúvida, caso para aplicação deste direito.

Este argumento foi acatado pela Juíza na liminar que suspendeu o hidrograma da Norte Energia. De acordo com a decisão, “quanto ao pedido para que seja determinado ao IBAMA a realização de Consultas Prévias, Livres e Informadas junto aos povos indígenas e tradicionais da Volta Grande do Xingu, para a definição  do  hidrograma  a  ser  aplicado  ao  Trecho  de  Vazão  Reduzida,  bem  como  fixação  de  medidas preventivas, mitigatórias ou compensatórias que se venha a adotar, cumpre verificar o disposto no artigo 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, in verbis: Artigo 6° 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar  os  povos  interessados,  mediante  procedimentos  apropriados  e, particularmente,  através  de  suas  instituições  representativas,  cada  vez  que  sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente (…). Na espécie,  não  resta  dúvida  de  que  a  discussão  dos  autos  diz  respeito  a  medidas administrativas suscetíveis de afetar os povos indígenas e tradicionais da Volta Grande do Xingu”.

Em sua decisão, porém, o desembargador Betti deu mostras de desconhecer o texto jurídico da Convenção 169. Segundo ele, a obrigação de consultar as populações tradicionais seria “contraditória”, uma vez que, no processo de construção da hidrelétrica de Santo Antonio, no Rio Madeira, em Rondônia, teriam sido consideradas suficientes audiências públicas no processo anterior ao licenciamento da obra.

De acordo com especialistas na Convenção 169 da OIT, consultados pelo Xingu Vivo, porém, o desembargador se equivocou nos pressupostos interpretativos dos fundamentos jurídicos utilizados. Cabe fazer uma distinção entre o fundamento jurídico da Audiência Pública, consubstanciada nas normas do licenciamento ambiental, e o direito fundamental à consulta e consentimento prévio, livre e informado cujo fundamento jurídico é a Convenção 169 da OIT, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Audiência Pública tem natureza jurídica de direito à participação, de qualquer cidadão. Já o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado é um direito fundamental à vida, à autodeterminação e, em especial, à proteção do pluralismo cultural garantidos aos Povos Indígenas e demais Comunidades Tradicionais.

Por outro lado, o que está em jogo não é o licenciamento de Belo Monte (para traçar um paralelo com o argumento do desembargador sobre a usina de Santo Antonio), mas uma decisão administrativa sobre o uso da água da Volta Grande. “Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É direito do povo ser consultado se o Estado vai fazer algo que mexe com a vida das comunidades. Tirar a água da Volta Grande significa acabar com a atividade econômica dos pescadores, a pesca de subsistência dos ribeirinhos e dos indígenas, está matando toda a vida do rio, está matando as árvores que dependem das cheias e das secas para seu ciclo normal de vida, está secando os igarapés que deságuam no Xingu, está secando as roças dos agricultores e assentados, está destruindo a vida de todo mundo. Por isso que essa gente tem que ser consultada sobre o hidrograma a, b ou c, e por isso eles tem que ter o direito de dizer não”, explica Antonia Melo, coordenadora do Xingu Vivo. “E tem mais. O direito à consulta não depende de nenhuma decisão da Justiça, de nenhuma liminar a favor ou contra a vazão da Volta Grande. O direito de consulta está previsto numa Convenção que o Brasil assinou, e que tem que ser cumprida”

MPF vai recorrer
Em nota divugada nesta quarta, 4, o Ministério Público Federal afirma que irá recorrer da suspensão de liminar doTRF1. Segundo o órgão, essa é a sétima vez que a presidência do TRF1 suspende liminares da primeira instância em favor da usina de Belo Monte. A suspensão de segurança é um tipo de recurso que retira a efetividade de qualquer decisão judicial provisória até o trânsito em julgado do processo, impedindo, na prática, que o tema discutido na ação do MPF seja solucionado pelo poder Judiciário. Pela legislação que prevê esse tipo de recurso, ele pode ser manejado quando há evidência de “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública”.

Para o MPF, nenhum desses requisitos está presente no caso do hidrograma de Belo Monte. Em manifestação que não foi levada em consideração pela presidência do TRF1, o MPF sustentou que é falsa a argumentação de que haverá impacto na geração de energia porque, sendo uma usina a fio d’água, Belo Monte só contribui significativamente para o esforço energético no primeiro semestre, quando a bacia do Xingu está cheia. “A leitura do desembargador é um erro do início ao fim”, observou um dos juristas do MPF. Nem a consulta prévia, nem a transparência sobre as análises do Ibama, nem o hidrograma provisório que seria mantido até dezembro de 2021 teriam nenhum impacto sobre a geração de energia, argumentou o MPF.