Garantir a vida do Xingu é mais importante do que geração de energia, diz presidente do Ibama sobre Belo Monte

Movimento Xingu Vivo e organizações parceiras tiveram diversas reuniões com ministérios e órgãos do governo federal em Brasilia

Ana Laide Soares e Antonia Melo, do Xingu Vivo, explicam impactos de Belo Monte ao presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho

Por Verena Glass*

Na última semana, representantes do Movimento Xingu Vivo, acompanhados das organizações parceiras Amazon Watch e International Rivers, de representantes do Conselho Ribeirinho do Xingu e do acampamento Nova Aliança, além do pesquisador da UFPA, Elielson Silva, estiveram em Brasília para conversas estratégicas com os Ministérios do Desenvolvimento Agrário (MDA), dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e do Meio Ambiente (MMA), além do Ibama e da Ouvidoria Agrária Nacional, ligada ao Incra. Na pauta, a Volta Grande do Xingu e seu povo

Desde o início das obras de Belo Monte em 2011, a remoção de famílias ribeirinhas de seus territórios, o desmatamento e os conflitos agrários na região se agravaram em curva ascendente. Este quadro se agudizou com a consolidação política do projeto de instalação da mina de ouro canadense Belo Sun sobre comunidades ribeirinhas e o assentamento PA Ressaca na Volta Grande o Xingu, áreas de impacto direto de Belo Monte, e atingiu nível crítico de tensão nos últimos anos do governo Bolsonaro.

Resumindo o quadro crítico da Volta Grande, em conjunto com as lideranças das comunidades e dos Núcleos Guardiões do Xingu, o movimento Xingu Vivo pontuou os seguintes problemas:

– A mineradora Belo Sun tomou mais de 2.400 hectares de terras públicas, de forma ilegal mas com anuência do Incra, ameaçando os moradores da Vila Ressaca e se apropriando de lotes do PA Ressaca

– Famílias sem terra que, em protesto contra este crime, ocuparam um dos lotes tomados pela mineradora e formaram o Acampamento Nova Aliança, querem negociar o seu assentamento no PA Ressaca

– Os conflitos de terra se agravaram no Pará e é preciso criar uma superintendência do Incra em Altamira

– As famílias ribeirinhas que foram expropriadas por Belo Monte e tiveram o direito de retorno à beira do rio garantido por um acordo firmado entre a Norte Energia, o Ibama e o MPF, ainda aguardam o reassentamento no chamado Território Ribeirinho, condicionante imposta pela Licença de Operação do Ibama e descumprida há sete anos pela Norte Energia

– O chamado hidrograma de consenso da Norte Energia, que chega a desviar 80% das águas da Volta Grande do Xingu para as turbinas de Belo Monte, inviabilizou há mais de 6 anos a reprodução dos peixes, deixando pescadores, ribeirinhos e indígenas em situação de extrema insegurança alimentar e inviabilizando a atividade econômica da pesca

– Os povos tradicionais da Volta Grande do Xingu não foram consultados nem sobre o hidrograma de Belo Monte nem sobre a instalação de Belo Sun, como exige a Convenção 169 da OIT

– Lideranças sociais ameaçadas de morte em função das lutas contra invasores de seus territórios (grileiros, mineradoras e outros) não têm proteção adequada do Estado e seguem em situação de extremo perigo e precariedade

MDA deve priorizar estado do Pará

De acordo com o secretário de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental do MDA, Moises Savián, que recebeu a delegação do Xingu na sede do Incra, a situação de conflitos fundiários no Pará é de conhecimento do ministro Paulo Teixeira, que deve visitar o estado e vários assentamentos em situação de maior tensão em meados do mês de abril. Segundo Savián, no entanto, ainda é cedo para discutir a criação de uma superintendência do órgão em Altamira, uma vez que o orçamento geral do Incra sofreu uma diminuição drástica de recursos nos últimos anos. “O que vamos fazer é priorizar a nomeação dos superintendentes do Incra no estado. ”, afirmou

Autor de uma extensa pesquisa sobre a situação fundiária da Volta Grande do Xingu e adjacências, o professor Elielson Silva detalhou os principais problemas das comunidades e assentamentos da região, afetados por programas como o Titula Brasil – que dá aos prefeitos locais poder de regulamentar o uso de terras da União – e pelo assédio de mineradoras como a própria Belo Sun, fazendeiros, grileiros e madeireiros ilegais.

Sobre estas questões, a Ouvidora Agrária Nacional, Dra. Claudia Damico, reforçou a intenção de promover uma ação interministerial na região que envolva os Ministérios do Desenvolvimento Agrário, Meio Ambiente, Justiça, Direitos Humanos e Povos Indígenas ainda no mês de abril e já solicitou apoio do professor Elielson Silva. “E precisamos urgente rever o Terra Legal”, complementou.

Em resposta às demandas do Acampamento Nova Aliança, o secretário e a ouvidora avaliaram que há possibilidades de negociação em médio prazo. “Vamos começar a estudar as ações para a regularização fundiária na região”, explicou Savián.

Ibama quer condicionantes cumpridas

No Ibama, a delegação do Xingu foi recebida pelo presidente do órgão, o advogado e ex-deputado federal Rodrigo Augustinho. Como ponto central da reunião, foram apresentados os severos impactos de Belo Monte sobre a as comunidades da Volta Grande desde o início da operação da usina em 2015, e o sistemático descumprimento de condicionantes por parte da concessionária Norte Energia, cuja Licença de Operação expirou e precisa ser renovada pelo Ibama.

Para ilustrar as denúncias, representantes do Conselho Ribeirinho do Xingu explicaram que o reassentamento das famílias expulsas do rio e das ilhas do Xingu – acordado com a Norte Energia e condicionante da Licença de Operação da hidrelétrica -, ainda não foi cumprido. “Há mais de sete anos que a Norte Energia enrola as famílias, que estão em situação de extrema vulnerabilidade, e o Ibama não faz nada, não aplica uma multa”, afirma Josefa de Oliveira. O mais grave, acrescenta, é que o senador Zequinha Marinho, aliado de fazendeiros locais que ocupam as áreas destinadas aos ribeirinhos – o chamado Território Ribeirinho -, pretende criar uma comissão externa do Senado para anular tanto o Território quanto o Conselho.

Outro grave problema, acrescentam as representantes do Movimento Xingu Vivo, Antonia Melo e Ana Laide Barbosa, é que o chamado Hidrograma de Consenso da Norte Energia, plano de uso do Xingu que tem desviado até 80% das águas da Volta Grande para a hidroelétrica, inviabilizou não apenas a atividade pesqueira da região, mas também criou tal estresse hídrico, que a agricultura nas margens da Volta Grande tem sido fortemente prejudicada pela seca.

Adiantando que nesta audiência sua intenção era ouvir a delegação do Xingu mais do que dar alguma resposta concreta, Augustinho explicou que, primeiro, o senador bolsonarista Zequinha Marinho “pode fazer quantas audiências quiser, mas eles não tomam nenhuma decisão”; e que, como presidente do Ibama, ele tem ciência que uma das principais características de Belo Monte é falta de cumprimento das condicionantes. “Meu sonho é que não tivesse a hidrelétrica”, explica. Mas agora, garante, não vai ter nenhuma licença sem que todas as condicionantes sejam cumpridas.

Nesse sentido, acrescentou Augustinho, o hidrograma de Belo Monte tem que garantir a vida do Xingu. Segundo ele, era sabido desde o início que o rio é sazonal e que em determinadas épocas do ano isso afetaria a eficiência da hidroelétrica. “Queremos um hidrograma que mantenha o rio vivo!. Mesmo que não dê pra gerar energia. E a Norte Energia vai ter que entender que eles têm que implementar as condicionantes”, concluiu.

MDHC deve articular defesa de assentadas e assentados com INCRA e MDA

O Pará é o estado com um dos maiores números de lideranças sociais ameaçadas de morte. De acordo com organizações de direitos humanos do Estado, são mais de 90 casos notificados, mas a estimativa é de que sejam muito mais. E a maioria das ameaças se dá no âmbito de conflitos agrários

É o caso de Amilson Cardoso, que hoje é uma das lideranças do acampamento de famílias sem terra Nova Aliança, que ocupou um dos lotes no PA Ressaca, na Volta Grande do Xingu, cedidos ilegalmente pelo Incra à mineradora canadense Belo Sun.

Em audiência no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) com Isadora Brandão (Secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos), Ana Luisa Zago (Diretora de Defesa dos Direitos Humanos) e Luciana Pivato (Coordenadora Geral do Programa de Defensores de Direitos Humanos), Amilson, que foi incluído no Programa de Proteção de Defensores (PPDDH), explica as dificuldades e ineficiência do programa, e a falta de confiança na escolta policial que deveria proteger a sua vida.

O mesmo ocorre com a assentada Maria Marcia, do Assentamento Terra Nossa, em Castelo dos Sonhos, explica a advogada da Amazon Watch, Ana Alfinito. Tanto a organização quanto o Movimento Xingu Vivo têm acompanhado a luta de Maria Marcia contra os grileiros que já destruíram grande parte do assentamento, as gravíssimas ameaças que tem recebido e a completa ineficiência (e até certo ponto, os abusos) do Programa de Proteção, cujos policiais muitas vezes parecem estar mancomunados com os ameaçadores.

Por outro lado, a precariedade do programa também é assustadora “Em 2021 eu recebi uma mensagem do PPDH do Pará, de uma técnica pedindo apoio para alimentação para os defensores, dizendo que o Programa não tem rubrica pra isso. Mas a Amazon Watch não pode dar apoio ao governo”, explicou Ana Alfinito

Coordenadora do Xingu Vivo e uma das mais antigas defensoras dos direitos humanos da região de Altamira, Antonia Melo detalhou alguns dos casos mais graves de ameaças e maus tratos a lideranças acompanhadas pelo Movimento. Segundo ela, grande parte da responsabilidade pelas penúrias impostas aos ameaçados é do próprio Estado, que muitas vezes está envolvido nos conflitos (ao conceder autorizações a mineradoras em assentamentos de reforma agrária, como é o caso do Terra Nossa), por inoperância do Incra, dos Ministérios Públicos e do Ibama, por conivência do governo estadual com grileiros e fazendeiros, e principalmente em função da total impunidade dos que ameaçam e atacam as lideranças

Para as representantes do MDHC, a gravidade da situação das lideranças ameaçadas e a precariedade do Programa de Proteção no Pará exige ações urgentes. “A impunidade é central e transversal dentro do Programa, e se não enfrentamos isso, seguiremos perpetuando uma serie de violações. Nem o caso da Dorothy teve uma solução completa. O Plano Nacional de Defensores precisa buscar soluções pra acabar com a impunidade, e para isso vamos precisar envolver instituições de Justiça para a criação de uma política nacional de enfrentamento a impunidade. Queremos fazer esse ponto um elemento central da nossa atuação no MDHC”, afirmou Luciana Pivato. E o primeiro passo será a busca de ações integradas entre os Ministérios dos Direitos Humanos e do Desenvolvimento Agrário, e o Incra, nas próximas semana

Balanço positivo

Para a Delegação do Xingu, o cômputo final dos dois dias de audiências com diversos setores do governo federal foi positivo. Houve ainda uma reunião das representantes do Conselho Ribeirinho com a secretária nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, Edel Moraes, para relatar os problemas enfrentados pelos ribeirinhos e demais populações tradicionais afetadas por Belo Monte.

“Tivemos uma boa recepção em todos os espaços e sentimos que fomos ouvidas e respeitadas”, avalia Antonia Melo. “Nós, que temos como foco principal o trabalho com o povo em seus territórios e não costumamos procuras as instituições, dessa vez viemos a Brasília como porta-vozes de várias comunidades do Xingu. Agora, voltamos ao Pará com a missão de dar continuidade aos processos acordados com os vários ministérios e órgãos”, complementa. Isso não significa que muda algo na forma de trabalho do Movimento, explica Ana Laide, do Xingu Vivo. “O governo Federal e o governo do Pará querem trazer a maior conferencia mundial sobre meio ambiente – a COP do Clima – para o Pará em 2025. Então vão ter que mostrar trabalho. Porque se nada for feito em relação ao Ecocídio da Volta Grande do Xingu, em relação ao projeto destruídos de Belo Sun,  em relação às lideranças ameaçadas e às populações tradicionais ignoradas, nós vamos denunciar. O mundo vai saber como a Amazônia e seu povo é tratado de fato pelos governos, para o bem ou para o mal”

*Colaborou Gabriela Sarmet, da Amazon Watch