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Ameaças à Volta Grande do Xingu se multiplicaram e diversificaram, dizem beiradeiros


Belo Monte acelerou a seca do Xingu, que ja não sustenta seus pescadores e ribeirinhos (foto Verena Glass)

Por Verena Glass – Muita coisa mudou na vida das comunidades da Volta Grande do Xingu (trecho de 100 km do rio que perdeu as águas para a hidrelétrica de Belo Monte) desde que a usina começou a ser construída em 2011. Onde o governo federal profetizou progresso no dia da sua inauguração, o que mais se desenvolveu foi a fome, a destruição e a violência, denunciam seus moradores.

Na última semana de agosto, a equipe do Movimento Xingu Vivo vivenciou uma situação que pescadores e ribeirinhos da Volta Grande têm enfrentado com frequência cada vez maior:  agressões e ameaças de turistas de pousadas que estão invadindo as margens e ilhas dos territórios tradicionais.

“Junto com lideranças dos Núcleos Guardiões do Xingu, a gente estava procurando inscrições rupestres nas pedras em uma das ilhas do território da Cachoeira da Fumaça, localizada no município de Anapu, quando fomos abordados por turistas que começaram a nos ameaçar. Muito agressivos, começaram a dizer que todas essas ONGs, esses indígenas, tinham que ser mortos, e que estavam preparados para matar”, conta Ana Barbosa, educadora do Xingu Vivo.

Conhecida como “praia da barraquinhas”, ilha é ocupada por estruturas para turistas que ameaçam os pescadores (foto Ana Barbosa)

A ilha, que sempre foi ponto de apoio dos pescadores, está tomada por barraquinhas onde banhistas e pescadores esportivos têm expulsado a população local. Neste ponto específico, foi feita uma estrada de acesso que já está assoreando o rio, e os vestígios dos povos ancestrais estão sendo depredada

Turistas derrubam tinta sobre desenhos rupestres em pedral na “praia das barraquinhas” (foto Ana Barbosa)

Esta foi apenas uma das denúncias apresentadas no III Encontro dos Núcleos Guardiões do Xingu, que aconteceu nos dias 28 e 29 de outubro no Centro de Formação do Xingu Vivo, e que reuniu mais de 50 pescadorXs, ribeirinhXs e indígenas dos territórios Bacajá, A’U, Baleia, Ilha Pacu-Seringa, Cachoeira da Fumaça, Belo Monte do Pontal e Paranã, para discutir a situação das comunidades beiradeiras da Volta Grande do Xingu, impactadas por Belo Monte.

A situação de calamidade vivenciada pelas comunidades no chamado trecho de vazão reduzida do rio, de onde as águas do Xingu são desviadas para as turbinas da hidrelétrica de Belo Monte, já foi exaustivamente estudada e denunciada por especialistas, pesquisadores e pela população local. Mas no início de novembro, a Justiça Federal de Altamira indeferiu uma ação do Ministério Público Federal que obrigaria a Norte Energia e o Ibama a tornarem públicas informações referentes ao licenciamento ambiental da usina. Segundo o juiz federal Henrique Jorge Dantas da Cruz, os autores da ação teriam que “explicar e provar quais os negativos impactos ambientais e sociais que estão sendo diretamente gerados na Volta Grande do Xingu”; mas exigiu também que, em 30 dias, a Norte Energia, o Ibama e a União provem que a o regime de uso da água do rio pela usina “não trouxe piora nos meios ambiente e social da Volta Grande do Xingu”.

“Essa posição é absolutamente disparatada”, avalia Antonia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo. “Bastasse a Justiça navegar o rio, ou escutar o que as comunidades apresentaram no Encontro dos Núcleos Guardiões em apenas dois dias, para entender a gravidade da situação”.

Vidas secas

Onde antes era um igapó, pé de sarão (camu-camu) frutifica no seco e ja perdeu produção, mostra Seu Valeriano (foto Verena Glass)

A seca que atingiu a Amazônia este ano foi percebida com especial gravidade na região de influência de Belo Monte. De acordo com os beiradeiros da Volta Grande, a água esquentou como nunca antes, o que, além de matar os alevinos, tem acelerado o adoecimento dos peixes adultos. “Quando conseguimos pegar um peixe, ele está magro, as ovas estão secas dentro dele. Mas o pior são os vermes. Os peixes estão cheios de vermes que comem eles vivos, e a gente não tem como consumir. Os peixes só comem lodo, estão podres por dentro, e nós vamos passando fome”, relata Seu Valeriano, pescador de elo Monte do Pontal.

Ao passo que a água do Xingu vai sendo desviada do leito do rio para as turbinas da hidrelétrica, os afluentes, igarapés, grotas e poços da região também secam, como no caso do Rio Bacajá, que banha a Terra Indígena Trincheira Bacajá, relatam os moradores. “Moro no rio Bacaja, sou pescador a muitos anos, meus filhos pescam comigo, mas não dá mais pra sobreviver de pesca. Não temos mais o que comer, nem o que colocar na mesa”, desabafa o pescador Paulo. Seu Herminio, do território A’U, complementa: “o peixe não compreende mais o rio… quando entra para desovar, se espanta; ta seco. Temos que ficar pulando mesmo, buscando um lugar para sobreviver”. Também as roças estão secando por falta d’água, e a fome é cada dia mais dolorida, contam os ribeirinhos.

Invasões

Várias ilhas são tomadas por pousadas sem fiscalização alguma, denunciam pescadores (foto Ana Barbosa)

Para além dos impactos de Belo Monte no rio, na fauna e nas roças, as comunidades locais também estão sofrendo com o aumento da violência por parte de fazendeiros e dos novos empreendimentos turísticos da região. De acordo com os relatos, o acosso por parte de donos de pousadas e turistas, como este sofrido pela equipe do Xingu Vivo, está cada vez mais violento.

“Estamos sendo expulsos do nosso próprio território”, diz Seu Raifran, pescador da Cachoeira da Fumaça. “Vêm esses turistas acabar com a nossa vida, tirando a nossa comida, nosso peixe. Vem essa gente com as suas pousadas ameaçando a minha família, elas levam tudo, levam nossa caça, e não tem fiscalização! ”. Além disso, complementa outro ribeirinho, “os fazendeiros e donos de pousadas, responsáveis por crimes de grilagens e desvio de agua, ameaçam e perseguem os pescadores, sabotam os motores das motos que ficam na beira do rio com óleo queimado, e também contratam milícias privadas para roubar nossos apetrechos de pescas e canoas”.

As ameaças de pessoas armadas são cada vez mais comuns, denunciam os beiradeiros. “A própria Norte Energia tem utilizado seguranças privados e milícias que disparam armas de fogo, com tiros de advertência, contra pescadores na boca da barragem, uma das principais áreas onde ainda se encontra peixe”, relata uma liderança.

Outro vetor de tensão, conta Dona Carmen, também pescadora de Belo Monte do Pontal, é a invasão das ilhas por pessoas que, por falta de opção, estão colhendo sarão (camu-camu, uma fruta que servia de alimento aos peixes quando as águas subiam nos igapós, mas que hoje caem no seco, e que tem alto valor no mercado de cosméticos e pelo alto teor de vitamina C). “O pessoal vai invadindo tudo, nossos territórios, e passa o dia, da manhã até a noite, catando sarão pra vender pros fazendeiros. É quase um trabalho escravo, mas esse ano já não ta dando quase nada. Então fica essa agonia, o povo caçando jeito de fazer um dinheirinho, invadindo tudo, e a gente tendo que lidar com mais esse problema”.

Dores e resistências

Representantes dos Núcleos Guardiões do Xingu no seu 3º Encontro (foto Ana Barbosa)

Os relatos que vão caindo como chuva de pedra sobre o grupo no encontro dos Guardiões do Xingu são perpassados por muitas dores. A dor da fome, do medo, da violência, da perda do rio, da perda das ilhas, da grilagem, das milícias e da destruição da mata pelos desmatamentos e queimadas. Conta Dona Ana pescadora: “Um dia fomos pescar e vi Valeriano [seu marido] virado de costa; ele estava chorando”.

Mas também houve muita potência nesse encontro, avalia Claudio Teixeira, educador do Movimento Xingu Vivo. “Foi um dos mais potentes que vivenciei nos últimos anos. Acredito que a fala compartilhada deu aos Guardiões uma nova força, que pode ser traduzida em aliança para a resistência “

Sara, filha de dona Ana e seu Valeriano, resume: “Estamos vendo nosso rio Xingu seco, e nossa floresta queimando. Nossa natureza está respondendo com agressividade. A natureza está enojada dessa agressão e está respondendo à altura da violação que está sofrendo. E nós gritamos de nossos territórios, mas parece que este grito não está sendo escutado.

E agora vem Belo Sun (projeto de mineração na Volta Grande), ela vai destruir tudo que restou, ela já está expulsando o povo, e nós não aguentamos mais empreendimentos de morte. Não era para estarmos brigando como ariranha dentro do rio.

Mas nós somos os verdadeiros guardiões da Volta Grande, porque somos nós que protegemos os nossos territórios, denunciamos todos os dias. Enquanto na Volta Grande estiver escorrendo um pingo de água, estarei lutando por ela”.

Leia aqui o documento final do III Encontro dos Núcleos Guardiões do Xingu