Encontro dos Núcleos Guardiões do Xingu denuncia violações e exige presença do governo na volta grande


Mais de 200 ribeirinhos, pescadores, indígenas e colonos dicutiram governança do Xingu (foto: Verena Glass)

Por Verena Glass/Xingu Vivo – Desde que a hidrelétrica de Belo Monte começou a operar em 2016, cerca de 130 km do rio Xingu na chamada Volta Grande – o trecho de vazão reduzida, que perdeu a água que é desviada para as turbinas da usina – estão morrendo. Essa é a principal denúncia dos mais de 200 pescadores, ribeirinhos, colonos e indígenas que participaram, no último fim de semana, do Encontro dos Núcleos Guardiões na Ilha do Canari, a cerca de 2 km da vila de Belo Monte do Pontal, em Anapu (PA).

O encontro, que foi organizado em parceria com o Movimento Xingu Vivo para Sempre, teve como objetivo discutir os impactos do sequestro e da privatização da Volta Grande pela Norte Energia, operadora de Belo Monte, e pensar em formas de recuperação da governança do rio pelas comunidades beradeiras. “Os Núcleos Guardiões resolveram realizar o evento nessa data, início de janeiro, para mostrar como o rio está seco”, explica Ana Laide Barbosa, do Xingu Vivo. “A gente queria estar junto neste momento para falar da importância e das estratégias de retomar o rio, de revitalizar o Xingu, que um dia foi nosso e agora Belo Monte acha que manda nele”.

Bancos de areia ainda cortam o Xingu apesar da estação das chuvas ja ter começado (foto: Verena Glass)

Nada do que foi relatado, em termos de violações de direitos por parte de Belo Monte e da mineradora Belo Sun, foi novidade. Grande parte das denúncias se centraram na perda da capacidade de reprodução dos peixes na Volta Grande, e na fome que hoje assola o povo do rio, desde que Belo Monte passou a desviar até 80% das águas que garantiam a piracema e o ciclo de frutificação da flora que alimentam os alevinos. Da comunidade de Marapani, passando pelas vilas e ilhas de Belo Monte 1, Belo Monte do Pontal, Bambu, Au, Canari, Pacu Seringa, Ilhas dos Arara, Furo do Barracão, Cachoeira do Itamaracá, Cachoeira do Carajá, Ilha Santa Rosa, Paranã, Lote do Justino, Vila do 10, Tapaiuna, Rio das Pedras, aldeia kuruaia Iawá, Ilha da Fazenda e Bela Vista de Belo Monte, até a Vila Ressaca e o Projeto de Assentamento Ressaca (localizados na área requerida pela mineradora canadense Belo Sun para instalar a maior mina de ouro a céu aberto do país), os relatos sobre a perda dos meios de reprodução da vida se repetiam de forma muito parecida. Também a violência não muda muito de cara, explicaram os participantes.

Nos três dias de debates do Encontro e nas oficinas temáticas sobre (In)justiça Climática e Convenção 169, Trabalho Escravo, Direito Previdenciário das mulheres, e Agroecologia, as comunidades e Núcleos, muitos deles distantes entre si, tiveram a oportunidade de se reencontrar, trocar experiências, compartilhar problemas, pensar alternativas de governança do rio e articular a luta por direitos. Mas principalmente sistematizar as denúncias de violações comuns a todos.

Denúncias
Em resumo, os principais problemas e violações relatados foram:

1. Perda dos meios econômicos: a falta de água no Trecho de Vazão Reduzida da Volta Grande do Xingu impede a reprodução dos peixes, e com isso os pescadores, que viviam da comercialização de pescado, perderam seu meio de vida. “O rio, nessa época, não era pra estar assim. Tá seco! E o peixe não tem onde desovar. O filhote, por exemplo, que antes pegávamos com 80kg, hoje não tem mais. Além disso, os pescadores não estão recebendo seguro e nenhum outro apoio.”, afirma Sara Rodrigues, pescadora da Ilha Pacu Seringa, mostrando uma foto de um filhote capturado pouco antes da construção da usina.

Sara Rodrigues mostra foto de filhote pescado antes da construção de Belo Monte (foto: Verena Glass)

Por outro lado, o stress hídrico causado por Belo Monte na região tem levado ao desaparecimento de igarapés e outras fontes de água, inviabilizando a produção agrícola dos colonos, principalmente dos que vivem do plantio de cacau e de açaí. Ambas as culturas – mas também as de subsistência, como macaxeira, frutíferas, feijão e outros – se perderam com as severas secas dos últimos anos. Como relata a agricultora Taiani Ribeiro, assentada do PA Ressaca, “a gente vive do cacau, do açaí, da mandioca. Mas acabou tudo. Ano passado teve festival do açaí; esse ano não vai ter porque não produziu. No PA Ressaca nós éramos grandes produtores de cacau. Agora, o cacau de 12 anos está morto porque não tem água”.

2. Impacto sobre a soberania e segurança alimentares: a fome tem sido uma realidade para muitas das famílias beiradeiras, principalmente depois da pandemia. A crise se relaciona com a falta de peixes e a perda da produção agrícola de subsistência, mas não só. Como relata a pescadora Socorro Melo, a Norte Energia tem expulsado os ribeirinhos de ilhas que habitavam ancestralmente, além de restringir a pesca e a locomoção dos beradeiros pelo rio. “Nessa ilha logo afrente, minha família sempre viveu, mas Belo Monte nos expulsou e hoje nem posso ir la. Meu bisavô está enterrado ali, era tudo nosso, e nos tomaram”. No túmulo, visitado naquele dia, ainda é possível ver nome, Elias Melo, e a data de falecimento em 21 de maio de 1909, além de inscrições em hebraico, revelando a surpreendente descendência judia da ribeirinha.

Lápide de túmulo do bisavô de dona Socorro escondida na floresta em ilha da qual a pescadora foi expulsa (foto: Verena Glass)

Por outro lado, explica um morador da Vila Ressaca, parte do território dos moradores da região foi cedida pelo Incra à mineradora Belo Sun, incluindo 21 lotes do PA Ressaca. “Isso não faz sentido, dar terra de reforma agrária, que é pra produzir alimento, pra uma mineradora estrangeira, enquanto a gente passa fome. Não faz sentido! E a mineradora ainda proíbe o pessoal de lavar o ouro de rejeito nos antigos garimpos, que era o ganha pão de muita gente. Nunca ninguém destruiu aquele território nessa atividade, mas agora o governo deu a área pra mineradora, que vai expulsar todo mundo e acabar com as matas que ainda estão preservadas”.

3. conflitos fundiários: há dois tipos principais de conflitos fundiários na Volta Grande atualmente, denunciaram os Núcleos Guardiões. O que se refere às ilhas, que, além da Norte Energia, também estão sendo tomadas por empresários do turismo que estão construindo pousadas em várias delas. “Cadê a SPU para retirar estes invasores, que nos atacam, xingam e até já ameaçaram de morte? Por que o governo não nos devolve o que Belo Monte nos tomou, mas permite que gente de fora faça negócios nas nossas ilhas?”, questiona um pescador.

O outro tipo de conflito se refere ao território reivindicado por Belo Sun, e à ação de um grupo armado (ligado à empresa Invictus) a serviço da mineradora, que vem ameaçando, monitorando e intimidando moradores da Vila Ressaca e do PA Ressaca. Por outro lado, boa parte do território da Volta Grande sofre com a entrada de grandes fazendeiros e grileiros, que estão desmatando a região em ritmo acelerado, denunciam os colonos.

4. Trabalho degradante: sem opções de obtenção de renda, muitos ribeirinhos têm sido obrigados a trabalhar para fazendeiros da região, principalmente em serviços de supressão de floresta. De acordo com as denúncias, as diárias pagas aos beiradeiros são mínimas (“quando eles nos pagam, porque muita gente vive recebendo calote”) e as condições extremamente degradantes.

Seu Valeriano, pai de Sara, mostra pé de sarão no seco. Fruta deveria alimentar peixes (foto: Verena Glass)

Outros pescadores têm sobrevivido da coleta de frutos, como o sarão (camu-camu), muito valorizado na indústria cosmética. “Tem dias que a gente passa das seis da manhã às seis da tarde catando o sarão, que devia estar caindo no rio para alimentar os peixes, mas hoje cai no seco por causa da Belo Monte. E as empresas pagam uma miséria pra gente, e vendem por uma fortuna pra fora”, diz Sara Rodrigues.

Ouvidoria Agrária e compromissos assumidos
Apesar do convite feito a vários órgãos e ministérios, apenas o coordenador-geral do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários (antiga Ouvidoria Agrária), ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Daniel Lerner, compareceu ao encontro. “Estou mais para ouvir do que para falar. Mas vamos fazer todo o possível para ajudar vocês com as demandas apresentadas”, garantiu.

Entre as principais demandas, os Núcleos Guardiões elencaram a exigência de que pescadores e ribeirinhos sejam consultados, de acordo com a Convenção 169 da OIT, sobre o hidrograma do Xingu na Volta Grande (regime que define a vazão das águas que permanecem no rio e o volume destinado a Belo Monte); que a consulta também seja garantida aos indígenas não aldeados tanto no que se refere ao hidrograma quanto em relação a Belo Sun; que a SPU intervenha na usurpação das ilhas e devolva o direito de uso aos ribeirinhos, retirando os invasores; que os pescadores recebam uma reparação financeira mensal que equivalha ao ganho anterior à construção de Belo Monte, até que o rio volte a produzir peixe suficiente para a garantia da segurança alimentar e para a pesca artesanal; que o governo federal reverta o acordo de cessão de terras públicas firmado com a mineradora Belo Sun; e que seja realizada uma missão interministerial na Volta Grande para encaminhamentos concretos de resolução das violações.

Dr. Daniel Lerner assume compromisso de intermediar diálogos com o Governo Federal (foto: Verena Glass)

De acordo com Daniel Lerner, os relatos de conflitos e impactos relacionados tanto a Belo Monte quanto ao projeto de mineração Belo Sun são graves e exigem uma atenção especial do governo. Neste sentido, assumiu o compromisso de intermediar reuniões e audiências com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Incra, o Ibama, a SPU, o Ministério da Justiça, o Ministério dos Direitos Humanos e o Ministério da Pesca, além de verificar a possibilidade da missão interministerial na região. “Estamos bastante satisfeitas com esse resultado. Se conseguirmos encaminhar tudo que foi acordado nesse encontro, consideramos que demos um passo importante na nossa luta pela revitalização da Volta Grande”, afirmou Antonia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo.

Manifestação

No último dia do encontro, após as considerações finais e acordos entre as comunidades, os participantes fizeram uma manifestação na Transamazônica, na ponte sobre o rio que fica diante da barragem principal de Belo Monte. Com cartazes e faixas que resumiram as denúncias e reivindicações, o grupo tomou a rodovia em uma marcha pacífica, monitorada de perto pela empresa de segurança privada da Norte Energia, Invictus, e outros agentes não identificados. “A gente estava marchando tranquilamente quando dois carros da Invictus passaram filmando os manifestantes com celulares. Eles também subiram um drone pra nos monitorar, e quando chegamos em Altamira, no fim do encontro, estávamos sendo aguardados por outra pessoa não identificada que nos filmou também. Mas não nos intimidamos com isso; nossa luta é legítima, e eles, que nos violam, tem motivos de se preocupar”, afirmou Antonia Melo.

O “Encontro de Núcleos Guardiões da Volta Grande do Xingu – A governança de nosso rio e floresta para enfrentar as mudanças climáticas e os grandes projetos”, que aconteceu de 12 a 14 de janeiro de 2024 na Ilha Canari, teve a participação do FAOR, da Amazon Watch, da CPT de Açailandia (MA), da assessoria jurídica da Aliança Volta Grande do Xingu  e de docentes da UFPA