Por Verena Glass – Na última sexta-feira, 15, a Câmara de Conciliação Agrária (CCA) do Incra, acompanhada de representantes do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, cadastrou 98 famílias do Acampamento Nova Aliança, que se formou em junho de 2022 no interior PA Ressaca, na Volta Grande do Xingu, após a cessão de 21 lotes do assentamento para a mineradora Belo Sun. O cadastramento reconhece que as famílias têm direito a serem incorporadas ao Programa Nacional de Reforma Agrária, primeiro passo para que possam efetivamente ser assentadas pelo Incra.
A disputa envolvendo o PA Ressaca, localizado em Senador José Porfírio (PA), teve início no final de 2021, quando o governo Bolsonaro cedeu à mineradora canadense Belo Sun 2.428 hectares de terras públicas, regularizando uma compra criminosa de 21 lotes no assentamento. Como denunciado pelas Defensorias Públicas do Estado e da União, a mineradora foi adquirindo ilegalmente as terras dos assentados e retirando-os dos lotes. Posteriormente, alegando que estavam abandonados, o próprio Incra fez com a Belo Sun um contrato de concessão de uso destas áreas, recebendo em troca uma fazenda no Mato Grosso e a garantia de pagamento sobre os lucros do empreendimento.
Inconformados com o desvio da função da terra, que legalmente está destinada ao usufruto de pequenos agricultores para a produção de alimento, um grupo de famílias sem-terra se organizou e, em meados de 2022, ocupou uma pequena parcela da área cedida à Belo Sun no PA Ressaca. Além de reivindicar o reconhecimento das famílias como beneficiários da reforma agrária, a ação visou apoiar uma Ação Civil Pública da DPU e DPE contra o acordo entre Belo Sun e Incra, que ainda tramita na Justiça.
Com a mudança de governo, em março de 2003 o Movimento Xingu Vivo, em apoio a luta dos acampados, iniciou um processo de diálogo com o Incra e com o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), demandando a anulação do acordo de cessão de lotes para a mineradora, a revogação de uma instrução normativa (IN 112) publicada pelo governo Bolsonaro logo após o acordo (e que regulariza a mineração, projetos energéticos e projetos de infraestrutura em áreas do Incra), além do assentamento das famílias. Apesar das imediatas reações positivas de membros do governo – avaliação de que o acordo com Belo Sun e a IN 112 são inconstitucionais -, foi apenas um ano depois que uma primeira ação para proteção dos acampados foi realizada, via cadastramento pelo Incra.
Próximos passos
A decisão do Incra de cadastrar as famílias do acampamento Nova Aliança foi acelerada após a ocorrência de uma série de ataques desde o início do ano. De acordo com denúncias dos acampados, ainda em janeiro a empresa de segurança armada da mineradora, Invictus, teria derrubado barracos no acampamento. Na semana do carnaval, ocorreram outros dois ataques, desta vez de pistoleiros, que atiraram contra as famílias e tentaram incendiar outro barraco. Assim que recebeu as informações dos ataques, o Movimento Xingu Vivo acionou a Câmara e o Departamento de Conciliação do Incra e do MDA. “A situação começou a ficar insustentável. Ou o Incra agia rapidamente, ou o conflito poderia se escalar de forma violenta”, explica Diogo Cabral, advogado da Aliança pela Volta Grande do Xingu, que assessora o Movimento Xingu Vivo.
No dia seguinte ao cadastramento dos acampados, o Incra e o Ministério da Justiça se reuniram com o Movimento Xingu Vivo e a Aliança pela Volta Grande para explicar os próximos passos do processo. De acordo com a diretora da Câmara de Conciliação de Conflitos Agrários do Incra, Maíra Coraci, será elaborado um relatório sobre a situação no PA Ressaca, que será encaminhado à presidência do órgão e aos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, Justiça e Meio Ambiente. Adicionalmente, será organizada uma supervisão ocupacional do assentamento para avaliar as necessidades de intervenção sobre posses irregulares de terras e possibilidades de assentamento de novas famílias. Também será solicitada uma reunião com o Ibama – que, por decisão do TRF1, passou a ser responsável pelo licenciamento ambiental de Belo Sun -, para que esteja ciente da situação de conflitos na área. A mineradora segue com o licenciamento suspenso por ordem da Justiça.
IN 112
Apesar de, no primeiro momento, ter considerada absurda a regularização da cessão de áreas de reforma agrária para atividades minerárias, projetos energéticos e obras de infraestrutura, o Incra foi postergando uma decisão referente à Instrução Normativa 112 (cuja revogação foi uma das principais demandas do Movimento Xingu Vivo na reunião de março de 2023), para, por fim, anunciar que a IN seria mantida, mas poderia passar por revisão. De acordo com o órgão, o Código de Mineração permitiria a emissão de direitos minerários em terras do Incra à sua revelia, o que justificaria a existência de um regramento para esses casos.
No final de fevereiro deste ano, então, o Incra convocou uma reunião com organizações e órgãos que já questionaram a IN 112 – Movimento Xingu Vivo, Aliança pela Volta Grande, Amazon Watch, Defensorias Públicas do Estado do Pará e da União, e Ministério Público Federal no Pará – para uma primeira avaliação dos equívocos da Instrução Normativa e para uma coleta de sugestões de adequação.
O primeiro ponto questionado foi a inclusão de três atividades completamente distintas – mineração, energia e infraestrutura – em uma mesma IN. Ou seja, por ter normativas jurídicas distintas, não podem estar sujeitas a regras iguais. Foi questionado ainda o porquê da inclusão de empreendimentos energéticos e de infraestrutura na IN, ja que não têm prerrogativas de afetação de áreas sobre a reforma agrária, como supostamente teria a atividade de mineração. De acordo com o Movimento Xingu Vivo, estas duas categorias nem deviam ser consideradas possíveis em assentamentos de reforma agrária.
Já a Amazon Watch, organização que tem atuado junto a populações e comunidades afetadas por mineração na Amazônia, questionou a premissa de que o Código Minerário seria constitucionalmente habilitado a se sobrepor à Política Nacional de Reforma Agrária. “A IN não seria necessária, no caso de BS, porque a mineradora violou a norma legal, a Constituição. Uma regulamentação da atividade minerária em assentamentos pode ser boa, mas em muitos casos, só seguir a Constituição e a legislação seria suficiente”, explica a advogada Ana Alfinito. E alerta: “O artigo 42 do Código da Mineração que diz que é possível recusar a lavra, se ela for prejudicial ao bem público ou comprometer interesses que superem o da exploração mineral. Esse é um artigo que muita gente esquece quando ocorrem conflitos em torno da destinação da terra”.
De acordo com os participantes da reunião, se uma IN se faz necessária, que seja um instrumento para proteger ao máximo as áreas de assentamento e dificultar a instalação de projetos alheios à reforma agrária. Tanto a DPE quanto o Departamento de Conciliação de Conflitos do MDA defenderam o direito à Consulta da população ameaçada por esses empreendimentos. “Muitas vezes os assentamentos são compostos por povos tradicionais que têm direito a essa Consulta. A IN teria que garantir o direito à Consulta, que muitas vezes é preventiva de conflitos”, afirmou a Dr. Claudia Dadico, do MDA.
Já o MPF apontou a necessidade de que a IN exija um estudo aprofundado dos impactos destes projetos sobre o assentamento e as famílias que permanecerão na área, para que seja avaliada a viabilidade ou não de instalação. “No caso de Belo Sun, precisam ser feitas explosões, abrir estradas, a própria fertilidade do solo pode ser afetada”, alertou o procurador Rafael Nogueira. Ao que Movimento Xingu Vivo agregou a necessidade de avaliação do impactos do uso intensivo de agua por estes projetos, principalmente no caso da Volta Grande do Xingu, onde Belo Monte tem causado um stress hídrico que já afeta a produção agrícola de mais de 100 km de margens do rio por causa da seca.
Para dar continuidade ao processo de avaliação da IN 112, o Incra deve convocar uma grande audiência pública com movimentos sociais do campo. “Vamos fazer uma IN que possa proteger a população”, promete a diretora de Desenvolvimento e Consolidação de Assentamentos do Incra, Maria Rosilene Bezerra.