Agência Fapesp – O impacto socioambiental causado pela usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, já foi classificado como “desastre” por pesquisadores, ambientalistas e diferentes veículos da mídia. Os danos voltaram a ser apontados, recentemente, em relatório de vistoria produzido pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). De acordo com o documento, foram constatados assoreamento e obstáculos à navegação no rio Xingu, alta mortalidade de árvores e inviabilização da reprodução de peixes, além da desestruturação do modo de vida de povos indígenas e comunidades ribeirinhas.
Um novo estudo, conduzido com apoio da Fapesp, enfocou especificamente a insegurança alimentar na cidade de Altamira, que sofreu forte impacto com a construção da barragem hidrelétrica de Belo Monte por ser o centro urbano mais populoso da região. Essa posição tornou Altamira um ponto central para a distribuição de bens, serviços e apoio logístico essenciais à construção da barragem. Como resultado, sua população foi fortemente afetada.
A construção de Belo Monte, realizada entre 2011 e 2015, provocou crescimento populacional sem o planejamento adequado para provisionamento de serviços à população local e aos migrantes em busca de trabalho. O choque fez de Altamira uma das cidades mais violentas do Brasil. Embora a população tenha declinado após o término da construção da barragem, o número de habitantes registrado pelo Censo de 2022 alcançou um total de 126.279 pessoas, 27,46% superior a 2010, data do Censo precedente. A título de comparação, a população total do Brasil cresceu apenas 6,46% no mesmo período.
O estudo em pauta foi publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health. O trabalho revela que 61% dos domicílios de Altamira apresentam algum nível de insegurança alimentar e nutricional.
“Realizamos o estudo em julho de 2022, cerca de sete anos após o final da construção, visitando 500 domicílios representativos do total de habitações da área urbana de Altamira. A escala utilizada para medir segurança e insegurança alimentar e nutricional domiciliar classifica essa condição em três graus. Verificamos que os piores níveis de insegurança alimentar e nutricional estavam associados a domicílios mais pobres, cujos responsáveis possuíam baixo nível de escolaridade e taxas mais elevadas de desemprego. Além disso, os domicílios que sofriam mais de insegurança alimentar tinham um maior número de moradores. As famílias deslocadas de suas antigas áreas de moradia e reassentadas também enfrentavam insegurança alimentar maior”, diz o demógrafo Igor Cavallini Johansen, pós-doutorando no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Nepam-Unicamp) e primeiro autor do estudo.
Johansen afirma que, diferentemente de outros estudos que já avaliaram insegurança alimentar no contexto de construção de hidrelétricas no Brasil, a pesquisa por ele liderada utilizou a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) domiciliar, com uma metodologia cientificamente validada para analisar o fenômeno do acesso a alimentos em qualidade e quantidade suficiente e fome. “Por meio dessa escala, utilizamos oito questões padronizadas que, dependendo do número de respostas positivas, classificam a condição de insegurança alimentar e nutricional do domicílio investigado”, conta.
Esse indicador compreende três categorias: (1) segurança alimentar (quantidade e qualidade adequadas de alimentos); (2) insegurança alimentar leve (qualidade afetada e preocupação com a disponibilidade futura de alimentos); (3) insegurança alimentar moderada a grave (de qualidade inadequada e início de escassez de alimentos a quantidade de alimentos insuficiente, compreendendo diferentes níveis de fome entre adultos e até mesmo crianças no domicílio).
“Formulamos e testamos três hipóteses: (1) de que os moradores do domicílio foram afetados por uma variedade de fatores que, em conjunto, produziram uma situação de insegurança alimentar; (2) de que a pobreza desempenhou papel fundamental entre os fatores e os grupos mais afetados foram aqueles retirados de suas casas e realocados nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs); (3) de que, além do impacto da construção da barragem, o problema foi agravado pela pandemia de Covid-19”, informa Johansen.
Na análise, múltiplas variáveis socioeconômicas foram consideradas: índice de riqueza (classificação dos domicílios em estratos socioeconômicos: mais pobre, intermediário, menos pobre), levando em conta as características da habitação e a existência ou não de bens como veículos e eletrodomésticos; se o entrevistado era beneficiário do programa Bolsa Família; se os moradores se autodeclararam oficialmente impactados pela construção da barragem; se a residência fazia parte de Reassentamento Urbano Coletivo; número de membros do domicílio; se havia nele algum integrante com 60 anos ou mais; e sexo, cor da pele, idade, estado civil, nível educacional e situação de trabalho do responsável pelo domicílio.
“As três hipóteses foram confirmadas. Como era previsível, verificamos que os diferentes fatores engendravam uns aos outros: o impacto causado pela construção da barragem aumentava significativamente a probabilidade de os moradores residirem em áreas de reassentamento; isso ampliava as chances de a família pertencer às camadas sociais mais pobres; o que, por sua vez, implicava risco de insegurança alimentar. Em 69,7% dos domicílios, os moradores tiveram maior dificuldade de acesso às quantidades e tipos desejados de alimentos após a conclusão da construção da barragem, em 2015”, relata Johansen. E acrescenta que, desse percentual, 52,5% reconheceram que a dificuldade já existia antes do início da pandemia de COVID-19. Os demais atribuíram à pandemia a piora nas condições de segurança alimentar e nutricional.
“Entre nossos resultados, foi interessante observar que moradores de domicílios com membros com 60 anos ou mais apresentaram menor incidência de insegurança alimentar. Isso porque, geralmente, essas famílias podiam contar com a aposentadoria desses idosos para compor sua renda, potencialmente reduzindo a exposição à pobreza e, consequentemente, à insegurança alimentar”, comenta Johansen.
O pesquisador lamenta não dispor de uma análise valendo-se da mesma escala (Ebia) aplicada antes da construção de Belo Monte, para poder comparar com os resultados obtidos depois. “De qualquer forma, foi chocante constatar um quadro com 61% de insegurança alimentar quando o consórcio construtor da hidrelétrica alega ter investido R$ 6,5 bilhões (aproximadamente U$ 1,3 bilhão) na região voltados a ações socioambientais e de sustentabilidade no período entre 2016 e 2022. O que foi feito desse dinheiro todo?”, questiona Johansen.
Infelizmente, os desacertos de Belo Monte não constituem um fenômeno isolado. Impactos socioambientais de grande monta têm sido o corolário de megaprojetos desse tipo na região amazônica. Outro estudo realizado pelo mesmo grupo de pesquisa e liderado por Caroline Arantes, professora da West Virginia University, nos Estados Unidos, mostrou que, no contexto das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau (em Porto Velho, Rondônia), comunidades de pescadores foram impactadas por perdas na produção e lucros da pesca após a construção das barragens. Em resposta aos impactos, os moradores tiveram de adaptar suas estratégias de pesca e recursos de sustento, com uma redução significativa do consumo de peixe nos domicílios. “Essas comunidades de pescadores que comiam peixe diariamente passaram a consumi-lo apenas uma a duas vezes por semana, ou até mesmo menos do que isso”, diz Johansen. Esse estudo foi publicado no Journal of Environmental Management.
Outro estudo precedente, neste caso sobre pescadores do rio Xingu no contexto pós-construção de Belo Monte, indica que não só os peixes ficaram mais escassos, como também os produtos alimentícios de maneira geral também ficaram mais caros na região. Os dados foram divulgados no periódico Human Ecology.