Nesta segunda, 22, organizações e movimentos sociais lançaram uma Nota Técnica com uma avaliação jurídica e política aprofundada da Instrução Normativa 112 (IN112), editada pelo Incra em dezembro de 2021 logo após a cessão de lotes do Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, no Pará, para a mineradora canadense Belo Sun. Ainda sob o governo Bolsonoro, o órgão responsável pela política nacional de reforma agrária concedeu à mineradora o usufruto de 2.428 hectares de terras públicas para a construção da maior mina de ouro a céu aberto do Brasil.
A Instrução Normativa 112/2021, que estabelece regras para uso de áreas de assentamentos por empreendimentos e/ou atividades de mineração, energia e infraestrutura, contém uma série de distorções jurídicas, avaliam tanto o Ministério Publico Federal e as Defensorias Públicas da União e do Estado, quanto as organizações sociais. Em primeiro lugar, pondera o procurador federal Rafael Souza, não é adequado prever na mesma IN normas idênticas para atividades que tem legislações tão díspares como mineração, rodovias, energia elétrica, etc. Cada uma delas tem um regência específica que pode alterar a avaliação do Incra, inclusive quanto às medidas de compensação, explica.
Já a defensora Publica da União, Elisangela Cortes, considerou temerária a premissa, constante na IN 112, de que cabe ao empreendedor atestar a veracidade dos documentos entregues ao Incra, que se exime de averiguar e ter uma análise aprofundada da realidade. Inclusive no caso de Belo Sun, o tamanho da área negociado com o Incra foi uma manobra pra burlar a competência do Congresso de aprovar a cessão de áreas maior de 2500 ha, explicou a defensora.
Outro aspecto muito preocupante, avaliaram os juristas, é a ausência total de mecanismos de consulta aos assentados na Instrução Normativa. “Os assentados aparecem como fantasmas. O artigo 16 da IN diz que eles vão ser esclarecidos sobre os instrumentos de cessão da terra. Todos os processos de despossessão já vão ter ocorridos, e este ‘esclarecimento’ seria uma legitimação de uma série de procedimentos que não são legítimos”, afirmou a advogada da Amazon Watch, Ana Alfinito.
Na contramão
Buscando pressionar instituições e o governo federal pela revogação da IN 112, por um lado, e pela abertura do debate sobre a matéria com a sociedade civil, por outro, um grupo de pesquisadores, organizações da sociedade civil e movimentos sociais elaborou a Nota Técnica “Direito e prioridade : pode a mineração se sobrepor à reforma agrária? O papel do INCRA na autorização de grandes projetos em áreas de assentamento a partir da Instrução Normativa 112”, destacando a violação de direitos e o prejuízo causado pela IN 112 à política de reforma agrária.
De acordo com a publicação, na contramão de outros procedimentos existentes em caso de conflitos de interesse sobre o uso dos assentamentos, a IN 112 admite a possibilidade de compatibilizar essas atividades com o desenvolvimento dos assentamentos, apesar das muitas evidências sobre os impactos negativos dos grandes empreendimentos econômicos sobre a produção agrícola familiar. Os autores alertam que a forma de instrução da norma conduz, na prática, o processo ao deferimento da anuência, limitando à ação do INCRA ao cálculo de danos e de indenizações aos assentados e à União.
A análise revela ainda que embora a norma afirme que as compensações, indenizações e condicionantes objetivam compatibilizar o empreendimento com a continuidade do projeto de assentamento, algumas condicionantes estabelecidas são em si mesmas incompatíveis com o Plano Nacional de Reforma Agrária, como a possibilidade de reassentamento ou realocação das famílias afetadas e de indenização de danos às atividades produtivas.
Participação social
Desde março de 2023, diferentes organizações sociais têm buscado dialogar com o Incra sobre a IN 112. Na primeira reunião, articulada pelo Movimento Xingu Vivo, a reação inicial de representantes do Incra e do Ministério do Desenvolvimento Agrário foi de surpresa e rejeição. Avaliou-se inclusive que, aos 100 dias do novo governo Lula, a IN 112 poderia ser anulada com uma canetada.
“Isto nunca aconteceu. Foram prorrogando os procedimentos, e iam nos dizendo que o processo seria mais complexo do que pensavam inicialmente, até que nos comunicaram que a IN 112 não seria revogada, mas revisada. Nos prometeram que incluiriam os movimentos e organizações sociais no debate, e ainda estamos esperando isso acontecer”, Afirma Ana Laide Soares, do Movimento Xingu Vivo.
Atualmente, o grupo de organizações que está cobrando do governo participação no debate da IN 112 se ampliou, incluindo, além do Xingu Vivo e da ONG Amazon Watch, a Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, Associação Regional de Produtores Agroecológicos – ARPA, Coletivo de Pesquisa Desigualdade Ambiental, Economia e Política (UFRJ, UFF, UFRRJ, UFRB e UFAL), Comitê em Defesa dos Territórios frente a Mineração – CDTM, Centro de Tecnologia Alternativa do Vale do Guaporé–MT – CTA, FASE, Federação das Associações de Moradores do Projeto de Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande – FEAGLE, Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra – MST, Núcleo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (UFJF, UFRJ, UFF, UFV, UEG), Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA, Justiça Global, International Rivers e outros.