Seca empoça rio Xingu e vida da Volta Grande é ameaçada (foto Verena Glass)
Por Verena Glass – A seca que atinge a Amazônia em 2024, transformado vastos trechos dos principais rios da região em poças d’água, é um fenômeno que tem se agravado nos últimos anos. A situação do Médio Xingu, onde foi construída a hidrelétrica de Belo Monte e onde a mineradora canadense Belo Sun quer instalar a maior mina de ouro a céu aberto do país, por exemplo, é especialmente alarmante, apontou o Serviço Geológico do Brasil (SGB).
De acordo com o último boletim do órgão, monitoramento realizado entre os dias 6 e 15 de outubro demonstra que “o rio Xingu, em Altamira, apresentou cota abaixo do valor mínimo para a época do ano, considerando a série histórica de monitoramento de 2016-2024 (após a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte)”. Já em São Felix do Xingu, a cota ficou abaixo dos níveis médios históricos para o período, em monitoramento que remonta ao ano de 1976, indica o SGB.
Esta realidade é corroborada pelos dados do Consórcio Norte Energia, responsável pela hidrelétrica de Belo Monte: no dia 22 de outubro de 2023, por exemplo, a vazão do rio Xingu na região era de 824 m³/s. Já em 2024, no mesmo dia 22 de outubro, a vazão caiu para 499 m³/s. “Uma forma simples de perceber essa realidade é pegar a balsa que atravessa o Xingu de Altamira para o travessão do Assurini. Dia sim, dia não ela está encalhando porque o rio está raso demais”, explica Ana Barbosa, do Movimento Xingu Vivo, que naquele 22 de outubro ficou presa na balsa por quase quatro horas. “Mas isso não é nada em comparação com o sofrimento dos pescadores e ribeirinhos, que já não conseguem navegar e pescar em grande parte do Xingu porque o rio simplesmente desapareceu”.
Atividade pesqueira está quase inviabilizada na Volta Grande (foto Chico Ludemir)
Em 25 de outubro, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil do Governo Federal reconheceu a situação de emergência hídrica nos municípios de Altamira, Anapu, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu, que compõem a Volta Grande, mas para as comunidades da região a situação de fome, falta de água potável, mortandade de peixes e perda das roças em função da seca (não apenas do Xingu, mas também de seus afluentes, dos igarapés e poços) segue inalterada.
O assentamento das roças secas
Fragmento da carta de Taiane Ribeiro, assentada do PA Ressaca
O Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, localizado na Volta Grande às margens do Xingu, foi criado em1992 para abrigar cerca de 500 famílias. Quase trinta anos depois, em dezembro de 2021 o Incra, órgão responsável pela implementação e gestão da Política Nacional de Reforma Agrária, firmou um contrato com a mineradora canadense Belo Sun, cedendo 21 lotes do assentamento para a instalação da maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Este processo se deu sem que tivesse sido realizado um estudo de impacto sobre os assentados, sem que tivesse sido feita a consulta previa, livre e informada às populações tradicionais do assentamento, e à revelia de ao menos sete Ações Civis Públicas contra o empreendimento, cuja licença ambiental está suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região desde 2017.
Grosso modo, de acordo com o projeto da mineradora, Belo Sun prevê a perfuração de duas minas de mais de 200 m de profundidade cada, duas pilhas de material escavado – que, juntas, ocupariam cerca de 170 hectares e teriam cerca de 200 m de altura cada – e uma barragem de rejeitos de 35,43 milhões de m³. A mineradora prevê ainda o desmatamento de 227 hectares de floresta para instalar suas estruturas e o uso, quando estivesse funcionando, de 473.000 litros de água por hora, volume suficiente para abastecer um município de 45 mil habitantes.
O lote da assentada Taiane Ribeiro, a Taia, no PA Ressaca, fica muito perto do local onde Belo Sun planeja instalar a barragem de rejeitos, que armazenaria mais de 35 bilhões de litros de água contaminada com cianeto, antimônio, arsênico e mercúrio, entre outros. Apesar do medo de que um dia este projeto possa se concretizar, no entanto, a preocupação de Taia e de sua família no momento é outra.
Na última semana, ela escreveu uma carta, sem destinatário certo, que tomou seu rumo pelas redes de whatsapp: “Sou moradora do ramal do João Bispo e estamos enfrentando a maior seca na região. Em 2024 nossos igarapés secaram e muitos peixes morreram (…) Perdemos nossa plantação de açaí e agora estamos perdendo o cacau, a mandioca e as frutas por causa que não tem água. A comunidade do PA Ressaca está clamando, queremos um estudo de caso porque estamos perdendo nossa plantação. Não temos água!”.
Para corroborar a denúncia, Taia anexa fotos do cacau seco, do igarapé semi-morto e das doenças de pele que o pessoal está pegando quando precisa lavar uma louça. “Quem tem contato com a água fica todo pirento. Isso é da água dos igarapés. Mas o rio Xingu ta igual, quem vai nadar no Xingu fica assim”.
“Quem tem contato com a água fica todo pirento” (foto Taiane Ribeiro)
A perda das roças e da produção de cacau e açaí em função da falta de água é um fenômeno que, segundo Taia, vem se agravando nos últimos anos. Nesse sentido, a possibilidade da instalação de Belo Sun no assentamento levanta sérias preocupações sobre o impacto que a atividade mineraria teria sobre os recursos hídricos da região – e, consequentemente, a atividade agrícola e a segurança alimentar dos assentados.
Mudanças climáticas
Rio Itatá, de onde Belo Sun pretende extrair mais de um milhão de litros por dia (foto Verena Glass)
De acordo com o previsto no projeto de Belo Sun, do total da demanda de água para o funcionamento da atividade minerária, cerca de 48.500 litros de água/hora para uso geral do empreendimento seriam captados no rio Itatá, no igarapé Ressacão e em um igarapé sem nome próximo à área da Grota Seca, local onde pretende escavar uma das cavas. Já os 473.000 l/h para o funcionamento da mina viriam de reservatórios que captariam a água da chuva.
Para Taia, esse plano não faz muito sentido levando-se em conta que todos os anos no verão os rios que atravessam o assentamento, como o Itata e o Ituna, invariavelmente secam. “E está piorando. Esse ano foi bem pior que 2023”, explica a assentada.
Já a proposta de utilizar apenas água de chuva para garantir o funcionamento do processo minerário – alternativa ao uso da água do Xingu, previsto inicialmente, mas posteriormente descartado – também parece problemática diante dos mais recentes dados do Serviço Geológico do Brasil. De acordo com o último boletim do órgão, de março a setembro deste ano a chuva acumulada na bacia de drenagem da estação Altamira foi 23% menor que a média histórica para o período.
Cenário apocalítico na Volta Grande é premonição de morte do Xingu, dizem ribeirinhos (foto Diogo Cabral)
Outro fator que pode dar indícios sobre o regime de chuvas na região, a vazão do Xingu também tem apresentado, no cômputo geral, variações negativas nos últimos anos, de acordo com o monitoramento do Consorcio Norte Energia. Tomando novamente como base o dia 22 de outubro, por exemplo, em 2019 a vazão do rio foi de 1.055 m³/s. Em 2022, foram registrados 822 m³/s, e em 2024, 499 m³/s.
Estes dados por si só carecem de valor estatístico que comprove que a Volta Grande está secando. Mas para a população que vive e trabalha às margens do rio, em suas ilhas e águas cada vez mais rasas e quentes, não há dúvidas de que o clima mudou, e que, com esta mudança, com Belo Monte, o desmatamento e as queimadas recorde (Altamira ocupa o 5º lugar no ranking do desmatamento e o 2º na lista de municípios com maior número de focos de queimada), a água na região está diminuindo. E este fato inviabiliza, sem a menor sombra de dúvida, a instalação da mineradora Belo Sun na região, avalia Ana Barbosa, do Movimento Xingu Vivo. “Nós que estamos na briga pela vida do Xingu desde 2008, que há mais de 15 anos subimos e descemos esse rio, percorremos os ramais de Altamira, Anapu, Senador José Porfirio e Vitória do Xingu, e conversamos com assentados, ribeirinhos, pescadores, indígenas, sem-terra, garimpeiros artesanais, pilotos de voadeira e todo esse povo que vive na Volta Grande, a gente tem propriedade, conhecimento e legitimidade de dizer que Belo Sun é inviável do ponto de vista social, ambiental e principalmente hídrico. Então é incompreensível que o Ibama ainda não tenha negado o licenciamento dessa mineradora. Assim como é assustador ver o Incra cedendo terras da reforma agrária, que são pra cultivar alimentos, para uma empresa estrangeira, sem ao menos exigir uma análise de impacto sobre os assentados e sobre a produção de quem conseguir ficar caso Belo Sun se instale na Volta Grande. Depois de cometer o maior crime dos últimos tempos com a construção de Belo Monte, o Governo Federal tem o poder de não repetir esse erro. É só negar Belo Sun, e não sabemos por que ainda não o fez ”, conclui Ana.