Por Ana Laíde Soares e Verena Glass – Uma história nunca existe sozinha. Sempre nasce de outras histórias, e vai bater em muitas mais, que brotam dela como galhos novos na primavera. Então a história da 1ª Festa da Produção do Acampamento Francisco Piauí teve antecedentes, e precisamos voltar um pouco sobre seus rastros. Mais ou menos 14 anos
Nos idos de 2011, a Volta Grande do Xingu, no Pará, sofria o primeiro grande golpe contra a vida do rio, suas matas e seu povo: era o ano em que o governo promoveu o leilão da hidrelétrica de Belo Monte, e era a luta contra este crime que capturava as atenções. Então quase ninguem se atentou para um outro crime que ocorria logo alí, na surdina: a compra ilegal de lotes do Projeto de Assentamento Ressaca pela mineradora canadense Belo Sun, a uma distancia de mais ou menos 10 km do que viria a ser o paredão da usina.
Pelo que o povo conta, homens da mineradora chegavam nos assentados oferecendo dinheiro pelo lote. Não tinha muita negociação. Era assinar, aceitar o pago e deixar o assentamento. Não tinha isso de não querer.
Quando se deu conta do ocorrido, a Defensoria Pública do Estado denunciou o crime, mas, como em muitas histórias tristes, o criminoso não apenas ficou impune, como foi premiado: em 2021, o Incra, órgão responsável por zelar pela reforma agrária, pelos assentamentos e pelos assentados no país, assinou com os estrangeiros um Contrato de Concessão de Uso, dando à Belo Sun o direito de criar sobre aquela área a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Bem lá, onde antes dezenas de famílias cultivavam a terra, produziam alimento e cuidavam de suas vidas.
Essa história poderia terminar triste assim; mas não terminou. Em meados de 2022, um punhado de agricultores e agricultoras sem terra, articulados com cerca de duas duzias de guerreiros munduruku, fizeram uma retomada no PA Ressaca, reivindicando a redestinação das terras para aquelas e aqueles que nelas queriam plantar. Foi assim que se deu o estranho caso do surgimento de um acampamento de sem-terra dentro de um assentamento de reforma agrária.
Belo Sun revidou imediatamente: entrou na Justiça com um pedido de reintegração de posse e uma queixa-crime contra os acampados, e contratou campangas armados para assediar, ameaçar, amedrontar e atacar os agricultores.
Nestes últimos três anos, a mineradora estrangeira foi enredando suas histórias de violência no PA Ressaca. Mas as famílias do logo batizado Acampamento Francisco Piauí, em meio à escassez, ao medo, à falta de tudo – menos de coragem -, fizeram brotar do chão usurpado pela mineradora (e pelo Incra) um milagre: entre 2024 e 2025, os agricultores do Acampamento Francisco Piauí produziram mais de 40 toneladas de alimentos e plantaram mais de 40 espécies diferentes de vida, de maxixe a mogno, de milho a cacau. E, no final do último mês, foi preciso festejar!
A Festa
A mobilização para a Festa da Produção do Acampamento Francisco Piauí teve inicio bem antes do acontecimento, nos dias 27 e 28 de setembro. Dias para fazer a colheita e preparar os produtos como açafrão em pó, gergilim em grãos e em paçoca, garapa; preparo das sementes de feijão, arroz, abóbora, melancia, sementes de mogno brasileiro, raiz de aipim, macaxeira e mandioca brava, cará roxo e branco, pimentas de várias espécies, e as pescarias e esperas de caça.
O primeiro dia de festa iniciou as 5h da manhã para os acampados, e para a equipe do Xingu Vivo e outros apoiadores que saiam de Altamira, atravessando o Xingu rumo ao acampamento. A primeira parada foi na boca do Travessão do Pirarara, com visitas em lotes onde familias acampadas estão trabalhando. Depois a comitiva seguiu para o acampamento, onde a acolhida aconteceu no barracão do pastor Antônio. Lá começaram os preparativos da festa. Quem enchia água enchia, quem fazia fogo fazia, quem preparava a carne de porco e peixe o fazia, e aos poucos a comida bobulhava no fogão a lenha. Enquanto o fogo fazia sua parte, o local era enfeitados com panos coloridos, bancos e mesas emprovisados, o rastelo ampliava o espaço limpo, e o varal com roupas coloridas para o bazar-donativo se montava. Chegou a hora da refeição e o terreiro estava em perfeição.
Após o descanso da tarde, começou a primeira roda de conversa, que foi fluindo até o por do sol. Pausa para o banho e a janta. E da janta ja se emendou a segunda conversa sobre “o que a mata e o rio me contaram”; ao mesmo tempo o fogo não parava de assar a comida, o peixe e a cane de porco. Histórias foram se entrelaçando, histórias de vidas, de experiências de caçadores, pescadores e de camponeses plantadores. Assim nossa vigília ia seguindo ao som de cantorias, caipirinha, porco assado e cerveja, iluminadas pelas lâmpadas a pilhas, velas, farol e a fogueira da esperança. As duas da madrugada, as histórias adormeceram e as redes abraçaram os corpos cansados, mas felizes.
O dia 28 amanheceu foi cedo, no cantar do galo, o fogo para o café à espera da panela com água. A macacheira ja estava cozida, chegou o pão, e assim como as coisas iam aparecendo, também os camponeses chegavam com suas famílias a pé, de moto e de carro. Após o café, iniciou-se a última roda de conversa. Conduzida pelas irmãs Jane e Katia da CPT de Anapu, essa prosa foi sobre as práticas de Jesus Cristo e como podem fazer sentido para o povo da resistência. “Foi uma experiência maravilhosa, estarmos com o Xingu Vivo e as famílias que ocupam terra na área de Ressaca. Lá vimos que o próprio povo está somando o movimento de lutas, articulando e se organizando. Estão se conhecendo e comunicando…um passo muito importante. Como sempre, o povo me passou muita esperança e aprendizagem . Estamos juntos na caminhada”, afirmou Irmã Jane.
Ao final, foram distribuídos quites emergenciais com medicamentos, e sorteados uma enxada, uma escavadeira e um facão. Com mais um almoço comunitário, muito caldo de cana, paçoca e troca de sementes, foi concluída a 1ª Festa da Produção com muitas esperanças plantadas, muitas intenções semeadas. E a convicção de que aqueles sem terra, aqueles agricultores sem quase nada, estão libertando a terra para os povos.