Nesta quarta-feira (30), o Conselho de Direitos Humanos da ONU publicará um relatório preliminar com todas as recomendações feitas ao Brasil por 78 países que integram o sistema das Nações Unidas (Carta Maior, 30.05.2012).
Na última semana, em Genebra, eles participaram da sessão de revisão dos registros de direitos humanos do Brasil, que ocorre a cada quatro anos e meio, num processo intitulado Revisão Periódica Universal (RPU). Todos os 193 países que integram a ONU passam periodicamente por este mecanismo. Depois de questionado, o país tem o direito de apresentar as ações realizadas para melhorar a situação dos direitos humanos em seu território.
A delegação brasileira que participou da sabatina na Suíça foi composta de vários ministérios, além de representantes do Poder Legislativo e Judiciário. Foi a segunda vez que o país passou pela Revisão Universal. Os temas debatidos resultaram do monitoramento da ONU sobre o país neste período, de um relatório preparado pelo próprio governo federal e também por contribuições da sociedade civil brasileira. Ao todo, mais de 50 entidades encaminharam informações ao Conselho de Direitos Humanos da ONU para contribuir com a avaliação.
Um dos temas foco de questionamentos dos países foi o impacto das grandes obras sobre os direitos das comunidades tradicionais no Brasil. O Peru, por exemplo, cuja população indígena é significativa, apresentou grande preocupação com os projetos de infra-estrutura desenvolvidos no âmbito do governo federal. A delegação peruana recomendou que o Brasil realize consultas públicas reais e de forma apropriada com as comunidades afetadas, sobretudo os povos indígenas, pela construção de estradas, ferrovias e hidrelétricas.
No ano passado, o governo federal não reagiu bem ao pedido da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) de paralisar a construção da Usina de Belo Monte enquanto não fossem realizadas, de acordo com os padrões internacionais, consultas prévias às comunidades afetadas. Belo Monte pode impactar significativamente a realidade de 24 povos indígenas que vivem na região de construção da hidrelétrica. Para Lucia Nader, diretora executiva da Conectas Direitos Humanos, “o governo brasileiro reagiu de forma virulenta, pondo em xeque sua política histórica de cooperação com organismos multilaterais e com o sistema internacional de direitos humanos”.
Em Genebra, a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, afirmou que o modelo de desenvolvimento do Brasil combina crescimento econômico com justiça social. “Mas a realidade tem mostrado que essa combinação não é uma equação perfeita, como temos visto também nas usinas de Santo Antônio e Jirau”, disse Camila Asano, coordenadora do Programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas. A organização contribuiu com a Revisão Periódica do Brasil enviando documentos à ONU e participando da sessão na semana passada. “O questionamento dos outros países mostrou preocupação da comunidade internacional sobre este novo momento do Brasil”, acrescentou.
Para além das grandes obras, os países também fizeram recomendações enfáticas sobre a realização da Copa e das Olimpíadas no país. O Canadá, por exemplo, manifestou preocupação com remoções forçadas. Disse que os megaeventos esportivos não podem implicar numa violação de direitos das comunidades, sobretudo as mais pobres. Outras delegações reafirmaram a importância de eventuais remoções serem feitas de acordo com a lei e garantindo as devidas compensações à população deslocada, incluindo o acesso à educação, saúde e transporte público no novo local de moradia.
Organizações da sociedade civil denunciaram que as obras para a Copa nas 12 cidades brasileiras em vez de servir para enfrentar velhas necessidades de políticas públicas estão sendo um catalisador de negócios imobiliários em detrimento dos mais pobres.
Violações no sistema prisional e violência policial
Outro tema abordado pelos países foi a política de encarceramento massivo no Brasil. Hoje, mais de 500 mil pessoas estão detidas no país, muitas delas em condições desumanas, em locais onde a prática da tortura e os maus tratos são sistemáticos. Mais de 36% da população carcerária é de presos provisórios, que ainda aguardam julgamento e podem ficar por mais de 6 meses sem ver um defensor ou o juiz pela primeira vez.
A comunidade internacional considera a situação grave e fez algumas recomendações: que o Brasil coloque pelo menos um defensor público em cada presídio do país; que garanta saúde às mulheres presas, especialmente as grávidas; e que coloque em prática o mecanismo nacional de prevenção à tortura, que permite o monitoramento independente do sistema prisional brasileiro.
“O mecanismo está pendente desde 2008, quando o país ratificou o Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura da ONU. O governo Dilma também vem se negando, desde fevereiro, a dar publicidade ao mais recente relatório da ONU sobre tortura no Brasil, resultado de uma visita da ONU ao país em setembro passado”, criticou Juana Kweitel, diretora de Programas da Conectas.
O uso excessivo da força e violações cometidas pela polícia militar de São Paulo em episódios como o da chamada Cracolândia e o do Pinheirinho, em São José dos Campos, também foram citados na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Plano de trabalho
Depois de divulgada a lista final de recomendações dos países, o Brasil terá que se posicionar se aceita ou rejeita cada uma delas. No caso de rejeição, é preciso justificar os motivos. O processo só deve se concluir em setembro, quando ocorre a 21a sessão do Conselho de Direitos Humanos. Mas a expectativa das organizações brasileiras de defesa dos direitos humanos é que o governo brasileiro aponte seus compromissos antes disso. Parte importante das recomendações vai ao encontro do que diz o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
Será então o momento de o país definir como concretizará as recomendações internacionais – via revisão ou aprovação de novas leis e políticas públicas – considerando que parte das recomendações requer o envolvimento das esferas estaduais e municipais de governo.
“Todo o processo da RPU deve ser visto como um meio a mais de aperfeiçoar as políticas de direitos humanos”, explica Camila Asano. “Agora vem o mais difícil, que é implementar o que se disse ali”, lembrou. Para Lucia Nader, se o Brasil pretende ser uma potência e uma democracia digna desse nome, precisa enfrentar velhas e novas violações aos direitos humanos: “Vivemos um momento de escolhas. É hora de decidir por um modelo de desenvolvimento em que direitos humanos não fiquem a reboque de crescimento econômico; de decidir se queremos continuar a conviver com práticas medievais ou passar a outro patamar.”
Até a próxima sabatina, no final de 2016, o Brasil pode ser chamado a prestar contas no meio do caminho sobre o estágio de implementação das recomendações. Mas esta é também uma recomendação com a qual o país precisará dizer se se compromete ou não.