Vistoria revela abandono de comunidades afetadas por Belo Monte

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MPF – Um rio em que é cada vez mais difícil pescar, em que os peixes morrem entre as pedras quando procuram alimento, em que os banhos podem provocar doenças de pele, em que a navegação se tornou mais perigosa – até impossível –, em que os moradores de suas margens vivem em situação de penúria e com medo de que uma inundação (provocada pelo rompimento da barragem) cause muitas mortes. Poderia ser um dos rios afetados por barragens de mineração em Minas Gerais, mas se trata de um trecho de 100 km do Xingu, no Pará, estrangulado pela barragem da usina hidrelétrica de Belo Monte e que tem 80% de suas águas desviadas para a produção de energia elétrica.

Nessa semana, durante os dias 25 e 26, equipes com representantes de nove instituições nacionais e internacionais, acompanhadas de pesquisadores da Universidade Federal do Pará de várias especialidades, percorreram o trecho que sofre os impactos ambientais mais severos de Belo Monte e visitaram um total de 25 comunidades. Em toda a Volta Grande do Xingu, os relatos são de abandono, penúria, incerteza e medo. No retorno da vistoria, em Altamira, as autoridades presentes convocaram prefeitos da região e a empresa Norte Energia S.A. (Nesa), responsável pela usina, apresentaram suas constatações e relataram perplexidade e indignação com o que viram.

A usina de Belo Monte, descobriram as autoridades que visitaram a região, está funcionando sem um plano de emergência, sem apresentar os monitoramentos semestrais exigidos pelo licenciamento ambiental e cometendo violações sistemáticas de direitos humanos. Como encaminhamentos urgentes, o Ministério Público Federal (MPF), que organizou o trabalho, deu um prazo de 24 horas para que a Norte Energia envie o plano de emergência da barragem e os relatórios de monitoramento sobre os impactos da hidrelétrica.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do MPF que participou da vistoria, pretende que seja realizada uma auditoria independente sobre a instalação e a operação da usina, da mesma forma que estão sendo realizadas auditorias sobre empresas responsáveis por violações de direitos humanos em Minas Gerais. A Nesa tem um prazo de 10 dias para responder se aceita se submeter à auditagem. O desvio de águas sob controle da empresa, o chamado hidrograma, segundo as autoridades presentes, precisa ser suspenso até a conclusão da auditoria.

Processo genocida – “Eu passo a olhar o processo de instalação de Belo Monte como um processo genocida, um processo de expulsão das comunidades. Afirmo minha perplexidade e minha indignação com o que verificamos”, disse a procuradora da República Thais Santi, que coordenou a vistoria interinstitucional.

“Eu já naveguei na Volta Grande algumas vezes antes de Belo Monte e conhecia um rio cheio de movimento, com barcos e canoas passando o tempo todo, as pessoas brincando nas margens. O que vi dessa vez foi muita tristeza. O Xingu ficou triste, ninguém brinca na beira, nem quer entrar no rio por medo de doenças, ele não é mais navegável e os moradores têm o seu tempo controlado, seu lazer inviabilizado e suas vidas precarizadas pela atuação da empresa. A sua empresa controla o rio, controla a fome e a sede de todas as formas de vida na região, e isso é inaceitável”, disse a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat ao representante da Norte Energia, José Hilário Farina Pontes.

Deborah Duprat ressaltou o descontrole do Estado brasileiro sobre as compensações feitas pela Norte Energia: “a empresa controla completamente a vida das pessoas, de todas as pessoas que foram atingidas de alguma forma por esse empreendimento. A relação da empresa se dá na base do pedido, quem pede leva. Há uma precarização total dos direitos, as pessoas não se sentem protegidas por direitos”.

“A empresa viola tratados internacionais de direitos humanos e nós vamos levar isso às instituições internacionais. Não há uma visão de desenvolvimento, e sim de fragmentação das comunidades, pelo poder dado à empresa para definir quais lideranças e comunidades irão receber as compensações. Não há plano de contingência, proteção, emergência para a Volta Grande do Xingu. Em Brumadinho existia, aqui sequer isso. Fica claro que é necessária uma mudança estrutural para revisar e avaliar impactos a fim de assegurar os direitos humanos daquelas pessoas”, disse Leonardo Pinho, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Os representantes do Fundo de Populações da Organização das Nações Unidas, Vinícius Monteiro e da embaixada da União Europeia, Lise Pate, se comprometeram em relatar as constatações da vistoria aos organismos que representam e de cooperar com a busca de soluções para a situação da Volta Grande. Para Renan Sotto Mayor, representante da Defensoria Pública da União, a Norte Energia não deve ter o poder, que tem, de definir quem é, e quem não é atingido. “Há um dano moral existencial para a vida das comunidades. Pessoas que viviam de forma totalmente conectada ao rio não têm mais nenhuma perspectiva de vida. O que presenciamos foi a desesperança, nem revolta mais as pessoas têm, apenas uma profunda depressão”, disse.

Andrea Barreto, da Defensoria Pública do Estado do Pará, classificou a situação de abandono da Volta Grande do Xingu como criminosa. “Isso é unânime entre as instituições que participaram da vistoria. Houve um agravamento das violações de direitos humanos, as comunidades perderam a capacidade de se sustentar e de se locomover. O rio não tem mais condições de navegação e os travessões são perigosos e até intrafegáveis. Meu sentimento é de revolta com o que vi”. O promotor de Justiça Antônio Manoel Dias, que tem uma equipe voltada para o acompanhamento das condicionantes, ressaltou o impacto de Belo Monte sobre os municípios da região, que acabam absorvendo demandas provocadas pelo empreendimento.

Penúria e abandono – No segundo dia da vistoria, um carro do Ministério Público do Estado do Pará, conduzindo uma das equipes, capotou na estrada que liga a Terra Indígena Paquiçamba às comunidades que vivem nas margens do Xingu no município de Anapu. “Nós sentimos na pele a precariedade a que estão submetidas aquelas pessoas. O carro capotou e quem nos resgatou foi uma equipe de valorosos indígenas Juruna, porque não há nenhuma estrutura de segurança que alcance aquela região”, disse Leonardo Pinho, do CNDH. As dificuldades de transporte agravam a condição de penúria. Com a escassez de peixe e sem rotas para escoar produtos agrícolas, que antes chegavam aos mercados pelo rio, a insegurança alimentar se tornou um fato cotidiano para todas as comunidades da Volta Grande.

A maior parte dos equipamentos públicos de saúde e educação visitados pelas equipes de vistoria está em péssimo estado e os moradores relataram falta de merenda escolar, transporte escolar, remédios e médicos. Muitos denunciaram que, na véspera da vistoria, chegaram remédios no posto de saúde da Vila Ressaca, que atende várias comunidades e estava há quatro meses sem medicamentos. O barramento do rio dificulta o acesso à água potável porque seca os lençóis freáticos superficiais, o que em algumas comunidades, como a Ilha da Fazenda, beira uma situação de emergência. A Norte Energia já perfurou três poços para fornecimento de água na comunidade, uma das mais antigas da região do médio Xingu e, mesmo assim, até hoje não foi capaz de garantir o abastecimento nas casas. “A Nesa leva nossa água para produzir energia que vai até a China, mas não consegue trazer água pras nossas casas”, disse um dos moradores da ilha.

Cemitério de peixes – Ao percorrer o rio, extremamente seco para a época do inverno amazônico, quando as chuvas faziam o Xingu subir de nível de mil metros cúbicos para 20 a 22 mil metros cúbicos, as autoridades puderam perceber a dificuldade para navegar entre os pedrais, que deveriam estar encobertos pela água se não fosse o desvio feito por Belo Monte. Mesmo assim, indígenas relataram que houve uma liberação de água nos dias que antecederam a vistoria. A incerteza sobre os volumes de água no trecho desviado mantém as comunidades em estado permanente de alerta. Agostinho Juruna, da Terra Indígena Paquiçamba, relatou que é comum encontrar peixes agonizando entre as pedras porque não há uma constância na vazão, a empresa retém e libera a água do rio conforme sua conveniência.

“A Volta Grande virou um cemitério de peixes”, disse Bel Juruna, moradora da aldeia Muratu. Adauto Arara, morador da aldeia Terrawangã, na Terra Indígena Arara da Volta Grande, disse que a escassez é visível, com os peixes muito magros e várias espécies ficando mais raras, como o pacu de seringa, o surubim, a pescada e a pirarara. O professor e pesquisador Leandro Melo de Sousa, da Universidade Federal do Pará (UFPA), confirmou as constatações dos moradores. Como não há constância no nível do rio, os peixes aproveitam uma cheia momentânea para buscar alimentos em áreas de várzea e acabam presos no seco quando as águas descem novamente. “Do jeito que está variável a vazão, o rio se transformou em uma armadilha para os peixes. A inconstância na subida e descida provoca a morte dos peixes”, disse.

A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, afirmou ao representante da Norte Energia que o chamado hidrograma da Volta Grande, em que o Ibama determinou a quantidade de água que deve ser liberada para a região a fim de assegurar a vida das comunidades e dos ecossistemas precisa ser suspenso imediatamente para que seja realizada a auditoria independente. “Não é admissível uma gestão de águas que deixe as pessoas naquela situação”, afirmou. O MPF deu prazo de 10 dias para a Norte Energia encaminhar uma resposta sobre a realização da auditoria independente.

A empresa terá um prazo menor, de 24h, para enviar ao MPF e à Fundação Nacional do Índio (Funai) os relatórios de monitoramento dos programas ambientais de Belo Monte. De acordo com o licenciamento, a empresa precisa enviar os dados de monitoramento para a Funai e para o Ibama a cada seis meses. Mas, o último relatório recebido foi o nono de um total de doze – os últimos três nunca foram enviados. Os monitoramentos devem mostrar o impacto da barragem sobre os peixes na Volta Grande do Xingu, por exemplo. “Nós vimos o peixe magro. Como o licenciamento ambiental até agora não constatou isso, que nós vimos com nossos próprios olhos?”, perguntou Deborah Duprat.

A sombra de Brumadinho – A incerteza sobre a vazão, que mata o alimento principal dos moradores, também tira o sono deles. Em janeiro de 2016, logo depois que o Ibama concedeu a Licença de Operação e permitiu o fechamento da barragem de Belo Monte, a empresa deixou passar uma quantidade muito grande de água sem nenhum aviso, provocando uma enxurrada que levou barcos, motores, equipamentos de pesca e utensílios que estavam nas margens do rio. O evento aconteceu de noite e espalhou o pânico na Volta Grande, porque, se ocorresse durante o dia, poderia ter provocado muitas mortes. As crianças passaram a ser proibidas de tomar banho e brincar nas margens. Na época, o MPF cobrou a elaboração de um plano de comunicação para que as comunidades sejam avisadas diariamente sobre  as vazões, mas ele não vem funcionando corretamente, já que a região, além de todas as precariedades, também não tem acesso à internet ou telefone.

Após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, no final de janeiro passado, o temor dos moradores que vivem abaixo da barragem de Belo Monte se transformou em pânico. A tragédia na cidade mineira foi citada por absolutamente todas as comunidades visitadas. A vistoria constatou que a usina está operando sem um plano de emergência ou contingência, sem ter feito nenhum treinamento para evacuação ou informado rotas de fuga. A informação foi confirmada pelo representante da Norte Energia, que disse que o plano está sendo preparado em reuniões com a defesa civil e o corpo de bombeiros e segue um cronograma.

Leonardo Pinho, presidente do CNDH, respondeu às alegações da empresa. “Não poderia haver operação da usina sem o plano já instalado e informado às comunidades por meio de audiências públicas. Se há um cronograma, ele está muito atrasado. A lei determina que a barragem só poderia operar depois da apresentação do plano e deveriam ser feitas simulações anuais com a população, rotas de fuga, plano de evacuação, sirenes. Nada disso foi feito. Belo Monte está funcionando sem nenhuma previsão de contingência. Em Brumadinho, em que se perderam tantas vidas, havia tudo isso. Em Altamira, não há nada”, afirmou.

O coordenador geral de licenciamento do Ibama Régis Santana estava na reunião e disse que, se a legislação de segurança de barragens está sendo violada, é a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que deve comunicar a ilegalidade ao Ibama para eventual suspensão da licença de operação. Durante a reunião que apresentou as constatações em Altamira, as autoridades deram um prazo de 24h para que a usina informe seu plano de emergência, porque a operação da barragem sem o plano é ilegal. O coordenador admitiu que o Instituto não tem corpo técnico para fazer a leitura dos relatórios de licenciamento.

Encaminhamentos imediatos da vistoria na Volta Grande do Xingu
A Norte Energia tem um prazo de 24 horas para encaminhar ao MPF os relatórios de monitoramento do Plano Básico Ambiental e do Plano Básico Ambiental Indígena, que estão atrasados.

A empresa também tem 24 horas para enviar o plano de emergência da barragem de Belo Monte.

Em dez dias, a Nesa deve enviar uma resposta sobre a realização de uma auditoria independente sobre suas práticas e programas na região do médio Xingu.

Instituições que participaram da Vistoria Interinstitucional na Volta Grande do Xingu nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2019

Ministério Público Federal
Ministério Público do Estado do Pará
Defensoria Pública da União
Defensoria Pública do Estado do Pará
Conselho Nacional de Direitos Humanos
Fundo de Populações da Organização das Nações Unidas
Embaixada da Comunidade Europeia no Brasil
Universidade Federal do Pará
Fundação Nacional do Índio
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

A matéria é do MPF

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