Por Verena Glass (texto e fotos) – Em missão no Pará na última semana, a Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo, criada pelo governo federal em novembro de 2023 para mediar e buscar conciliação em casos de conflitos socioambientais de maior complexidade, trouxe uma informação importante para as comunidades da Volta Grande do Xingu: em reunião com a presidência do Ibama, houve uma sinalização de que o projeto canadense de mineração de ouro Belo Sun, que pretende se instalar em uma região já duramente afetada pela hidrelétrica de Belo Monte, deve ter a licença ambiental negada.
Composta por diversos Ministérios, como Desenvolvimento Agrário, Mulheres, Povos Indígenas e Secretaria Geral da Presidência, além do Incra, Ibama, Secretaria de Patrimônio da União (SPU), Defensoria Pública da União (DPU) e Ministério Público Federal (MPF), nos dias 20 e 21 de maio a Comissão percorreu dois territórios emblemáticos da Volta Grande: o Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, região ameaçada por Belos Sun, e o trecho de Vazão Reduzida do Xingu, onde vivem as comunidades de pescadores e beiradeiros impactadas por Belo Monte.
PA Ressaca
Ainda em março de 2023, o Movimento Xingu Vivo e vários aliados se reuniram com representantes do MDA e do Incra em Brasilia, para denunciar dois fatos graves: um acordo de cessão, pelo Incra, de 2.428 hectares de terras públicas à mineradora canadense Belo Sun em 2021 (ainda sob a gestão de Bolsonaro), e a posterior edição de uma Instrução Normativa (IN 112) que criou regras para possibilitar a instalação de projetos minerários, obras de infraestrutura e projetos de energia em assentamentos de reforma agrária. A demanda do movimento, articulada com os Núcleos Guardiões do Xingu, era que o acordo e a IN 112 fossem revogados, e que famílias sem-terra que ocuparam parte dos lotes cedidos à mineradora em protesto contra esta transação, fossem reconhecidas como beneficiárias da reforma agrária e assentadas no local.
No entanto, apenas um ano depois, em março de 2024, o Incra se movimentou diante do acirramento dos conflitos na região. Desde o começo deste ano, os agricultores acampados começaram a sofrer uma série de ataques, tanto por parte da empresa de segurança patrimonial Invictus, contratada pela mineradora, quanto por desconhecidos, que passaram a derrubar barracos e atirar contra os sem-terra (situação reiteradamente denunciada ao Departamento de Mediação de Conflitos do MDA e à Câmara de Conciliação Agrária do Incra). Em 15 de março, então, uma comissão do órgão foi ao assentamento e cadastrou 98 famílias acampadas como beneficiárias da reforma agrária, prometendo a realização, em dois meses, de uma revisão ocupacional do PA Ressaca para levantar a possibilidade de assentar os agricultores no local.
Foi neste contexto que a Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo chegou ao PA Ressaca no último dia 20, para ouvir tanto os acampados quanto os assentados sobre as ameaças que vêm sofrendo por parte da mineradora e seus contratados. Foram registrados relatos das famílias que sofreram atentados de pistoleiros, descrições de como Belo Sun levou assentados analfabetos a vender seus lotes – o que é proibido por lei -, o despejo ilegal de gado no assentamento por parte de fazendeiros, impedindo o cultivo de alimentos pelos agricultores, e casos de assédio e violência por parte de homens armados da empresa de segurança Invictus. Corroborando estas denúncias, aliás, enquanto os membros do governo tomavam os depoimentos, uma viatura da Invictus começou a rondar o local de forma acintosa, até que policiais federais, que faziam a segurança da Comissão, ordenassem que o veículo se retirasse.
Por outro lado, as autoridades também ouviram assentados cujas terras estão localizadas diretamente ao lado de estruturas planejadas pela mineradora, como a barragem de rejeitos. De acordo com eles, que também denunciaram o assédio da Invictus, Belo Sun não fez nenhum estudo de impacto sobre o PA Ressaca, o que torna ainda mais grave a cessão de 21 lotes do assentamento à empresa pelo Incra.
Segundo a coordenadora da Comissão, Dra. Claudia Dadico, todas as denúncias estarão no relatório que será encaminhado às instâncias competentes no governo; mas ela também aproveitou para garantir que as famílias cadastradas pelo Incra em março terão prioridade para serem assentadas. “Estas famílias acampadas já estão cadastradas, e vão pontuar a mais quando for feita a seleção de quem terá direito aqui aos lotes. Este processo já foi concluído”. Segundo ela, o que falta fazer no PA Ressaca é a supervisão ocupacional, processo no qual o Incra deve avaliar a ocupação do assentamento, retirar quem estiver de forma irregular na terra e assentar definitivamente os beneficiários da reforma agrária. Sobre o prazo desta supervisão, prevista incialmente para maio, no entanto, Dra. Claudia Dadico informou que, em função das enchentes no Rio Grande do Sul, que destruíram os assentamentos do Incra no estado, o procedimento no PA Ressaca deverá ocorrer apenas no segundo semestre.
Já sobre o contrato de cessão de lotes do assentamento para a mineradora, a coordenadora da Comissão afirmou que a situação é complexa. “Nós [Departamento de Mediação de Conflitos do MDA] já fizemos a nossa análise e nos posicionamos contrários a esse contrato. Mas esta não é uma posição fechada no Ministério como um todo. Por outro lado, o contrato está sendo questionado em várias ações judiciais sobre muitos aspectos, principalmente pelo fato de não ter sido feita a consulta aos assentados. Há inclusive uma ação no Tribunal de Contas da União contra a cessão dos lotes”.
Uma outra questão é o licenciamento ambiental de Belo Sun, que agora está a cargo do Ibama por força de decisão judicial, prosseguiu Dra. Claudia Dadico. “Quanto a isso, gostaria de dizer que recentemente fizemos uma reunião com a presidência do Ibama, que nos deixou mais otimistas. Há um prognóstico, que não é uma posição oficial ainda, mas tudo está se encaminhado para que essa licença não seja concedida”. Por enquanto, a Licença de Instalação outorgada ainda pela Secretaria de Meio Ambiente do estado do Pará segue suspensa por decisão do Tribunal Regional Federal (TRF1).
Trecho de Vazão Reduzida
No segundo dia da Comissão na Volta Grande do Xingu, os membros do governo conheceram a realidade de pescadores e beiradeiros do Trecho de Vazão Reduzida, onde os impactos da hidrelétrica de Belo Monte se traduzem na destruição da atividade pesqueira, na extinção dos peixes, na morte da mata ciliar e em graves conflitos em torno das ilhas do Xingu, território das famílias beiradeiras cada vez mais invadido por fazendeiros e donos de pousadas especializadas em pesca esportiva.
Durante o percurso de quase três horas pelo rio, conduzido pela família de Seu Valeriano Rodrigues, um dos mais antigos e experientes pescadores da região, a Comissão pode vivenciar um pouco da realidade destas comunidades. A primeira parada foi na Ilha Pacu Seringa, onde os filhos de seu Valeriano, Sara e Orlando, explicaram o monitoramento independente que realizam em parceria com o MPF e o Instituto Socioambiental, sobre os impactos do sequestro das águas pela hidrelétrica. “Belo Monte chega a desviar 80% das águas da Volta Grande, e os peixes não se reproduzem mais”, explicou Sara Rodrigues. Orlando completou: “Antigamente o rio cobria tudo neste lugar onde estamos, e era aqui, nessa mata, onde os alevinos nasciam e se desenvolviam. Hoje as ovas secam dentro das fêmeas, os frutos que os alimentavam caem no seco, e as espécies de árvores essenciais para este ciclo estão morrendo”.
Seu Valeriano pede para que a Comissão conheça um barraco que fez no pé da ilha, e explica para a representante da SPU, Olivia Carolino: “A gente sempre pescou por aqui, isso tudo era nosso território que a gente está protegendo, mas um dia um pessoal chegou aqui e começou a desmatar. Parece que eram laranjas de um empresário de Minas Gerais que queria fazer uma pousada. Botamos pra correr. Ficamos num pedacinho de terra que eles tinham derrubado tudo e plantamos muita macaxeira, abóbora, pimenta, frutas. Essa terra é boa demais, mas o que a gente quer é preservar a mata”.
Seguindo rio acima, vez por outra a Comissão cruza com turistas de pesca esportiva. Já próximos ao Território Aú (complexo de ilhas nas proximidades do rio Aú, afluente do Xingu), o rio raso obriga Orlando e um policial federal a descer da voadeira e puxar o barco, algo cada vez mais comum no Trecho de Vazão Reduzida da Volta Grande do Xingu.
Por fim, a Comissão desembarca na Ilha do Amor, onde vive a família de Seu Sebastião, que recebe o grupo com almoço servido. “Antigamente, antes de Belo Monte, a gente saía pra pescar e em poucos dias voltava com muitos quilos de peixe. Agora, pra pegar o peixe que vocês comeram, passei dois dias no rio”. Seu Sebastião explica que, para além do problema da escassez de peixes, os beiradeiros têm enfrentado ataques constantes dos donos de pousadas e de fazendeiros da região, como já denunciado ao governo no início do ano.
Sobre estes conflitos, Olivia Carolino, da SPU, afirma que o órgão fará um levantamento da situação das ilhas para que possa ser criado um projeto de uso sustentável. “A primeira coisa que faremos é acionar a SPU no estado do Pará. Se eles não tiverem condições de realizar toda a vistoria, vamos acionar a SPU em Brasilia. Com isso, podem ser emitidos os TAUS (Termo de Autorização de Uso Sustentável) em favor dos beradeiros, para que depois o Incra regularize a situação da posse destas áreas”.
Respostas
Várias questões apresentadas pelos moradores da Volta Grande do Xingu acabaram ficando sem respostas, como a reivindicação de que todas as comunidades sejam consultadas, de acordo com a Convenção 169 da OIT, sobre o projeto de Belo Sun e sobre a gestão das águas do Xingu, privatizada pela hidrelétrica de Belo Monte. Também ficou sem resposta a reivindicação dos pescadores de que, enquanto perdurar a falta de peixes, o seguro-defeso ou uma compensação similar seja paga a eles durante todo o ano. Questões que, segundo a Comissão, serão discutidas após a produção do relatório da missão na Volta Grande
Na avaliação do Movimento Xingu Vivo, que fez a gestão junto à Comissão para esta primeira visita à região, foi importante que Brasilia tenha vindo ao Xingu e pisado o território de conflitos. Como pontuou a pescadora Sara Rodrigues, “eu sou o rio e o peixe, isso aqui sou eu. Foi importante a Comissão ter ido aos nossos territórios, ao invés de reunir representantes das comunidades numa sala na cidade. Eles puderam ver, sentir, cheirar nosso rio e nossas matas, e entender porque temos que preservar tudo isso. Agora, precisamos das respostas que eles nos prometeram”.
A expectativa, avalia o Movimento, é que os diálogos com os ministérios e órgãos do governo sejam garantidos a partir desta missão. Acima de tudo, porém, espera-se que haja celeridade na resolução dos conflitos, o que significa o cancelamento do contrato de cessão de terras públicas para a mineradora Belo Sun e a oficialização, pelo Ibama, da negativa do licenciamento ambiental do empreendimento. Também é preciso celeridade na revisão ocupacional do PA Ressaca pelo Incra, e das ilhas do Xingu pela SPU, para que tanto as famílias acampadas quanto pescadores e beiradeiros tenham garantido o direito ao território.