Por Verena Glass – No último dia 27 de novembro, o juiz federal de Altamira, Leonardo Araujo de Miranda Fernandes, anulou o acordo entre o Incra e a mineradora canadense Belo Sun que, em dezembro de 2021, cedeu à empresa 2.428 hectares de terras públicas, incluindo 21 lotes do Projeto de Assentamento (PA) Ressaca, em Senador José Porfírio, no Pará. Com esta decisão, Belo Sun deixa de ter qualquer direito sobre a área.
Em sua decisão, o juiz explica que “modificar a destinação de um bem público sem um ato formal de mesmo nível compromete a segurança jurídica, gerando incertezas quanto à validade da nova utilização. Além disso, permitir a mudança de destinação pela via da desafetação tácita enseja um esvaziamento da política pública, criando um precedente no qual a política de reforma agrária fica exposta a pressões sociais e econômicas e, de modo informal, afasta a proteção jurídica conferida pelo Estado ao instituir projeto de assentamento. Assim, o efeito negativo transcende a área tratada na presente ação, na medida em que enfraquece a política pública em si”.
Segue dizendo que “diante da inexistência de um ato normativo de desafetação da área e a consequente invalidade da tese de desafetação tácita, o Contrato de Concessão de Uso n.º 1.224/2021 encontra-se eivado de nulidade. A área destinada a o PA Ressaca, criada por meio da Portaria nº 67/1999, continua afetada à política de reforma agrária. A sua desafetação exigiria um ato normativo formal de mesma natureza, o que não ocorreu, inviabilizando a utilização dessa área para qualquer outro fim que não aquele previsto originalmente”.
E conclui: “julgo parcialmente procedente os pedidos da inicial para declarar a nulidade do Contrato de Concessão de Uso n.º 1.224/2021, extinguindo o feito com resolução do mérito na forma do art. 487, I, do CPC.”
Como resposta, a mineradora juntou a uma ação de reintegração de posse contra agricultores sem terra, que montaram um acampamento no PA Ressaca em meados de 2022 para exigir a destinação da área cedida pelo Incra à Belo Sun para fins de reforma agrária, uma contestação na qual afirma que adquiriu os direitos possessórios sobre as áreas objeto da lide em 2012, e exerce a posse desde então. De acordo com a Defensoria Pública da União (DPU), porém, Belo Sun nunca teve a propriedade da terra e nunca terá, uma vez que se trata de área federal, sendo que a posse concedida pelo acordo com o Incra deixou de valer no momento da assinatura da decisão judicial.
Vitória da resistência
A anulação do acordo entre Incra e Belo Sun, firmado ainda no governo Bolsonaro, foi considerada uma vitória pelo Movimento Xingu Vivo, que vem apoiando a resistência contra a mineradora há mais de 10 anos. Na avaliação do Movimento, é fundamental agora que o atual governo aplique na região as políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar, anunciadas desde o início de 2023, para atender demandas urgentes tanto do PA Ressaca quanto dos agricultores sem-terra que ocupam parte dos lotes cedidos à mineradora, além das famílias que vivem nas imediações do assentamento.
“Em março desse ano, o Incra cadastrou 98 sem-terra, que estão acampados na área desde 2022, como beneficiários da reforma agrária. Também prometeu fazer uma revisão ocupacional do PA Ressaca para verificar onde esse pessoal pode ser assentado. Já em maio, mais de 15 representantes do governo federal estiveram no local durante a missão da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo, ouvindo dezenas de denúncias contra a Belo Sun, e chegou a hora do governo Lula mostrar a que veio”, cobra Claudio Teixeira, membro do Movimento.
Inviabilidade do projeto minerário
O projeto de mineração da canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu pretende instalar a maior mina de ouro a céu aberto do país em uma região já brutalmente atingida pela hidrelétrica de Belo Monte. Por não ter apresentado estudos de impactos sobre os povos indígenas da região, no entanto, em 2017 o Tribunal Federal da 1ª Região (TRF1) suspendeu a licença de Instalação da empresa, inicialmente concedida pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará. Em 2023, o TRF1 foi além, e transferiu a competência do licenciamento ambiental do projeto para o Ibama, que já sinalizou que não pretende autorizar o empreendimento.
Para o Movimento Xingu Vivo, além destes fatores, há outros elementos que inviabilizam a implantação de Belo Sun na região. Como apontado pela DPE, por exemplo, não foi feito nenhum estudo de impacto sobre os assentados do PA Ressaca, nos moldes do que foi exigido no tocante às áreas indígenas. Também não foi feita a consulta prévia, livre e informada às populações tradicionais na área de impacto do projeto, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Mas o problema principal é a escassez de água na região, que tem piorado ano a ano. Já em 2023, agricultores e pescadores denunciaram a morte dos igarapés, a falta de água nos poços e a seca do Xingu, fatores que levaram à morte de peixes e à perda da produção agrícola. Em 2024, a crise hídrica levou o Governo Federal a decretar estado de emergência em todos os municípios do Médio Xingu.
De acordo com o último boletim do Serviço Geológico do Brasil, monitoramento realizado entre os dias 6 e 15 de outubro demonstra que “o rio Xingu, em Altamira, apresentou cota abaixo do valor mínimo para a época do ano, considerando a série histórica de monitoramento de 2016-2024 (após a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte)”. Já em São Felix do Xingu, a cota ficou abaixo dos níveis médios históricos para o período, em monitoramento que remonta ao ano de 1976, indica o SGB.
“Belo Sun prevê, em seu projeto, um consumo de cerca de 473 mil litros de água por hora, volume suficiente para abastecer um município de 45 mil habitantes. Com a crise climática, que só piora a situação da Volta Grande do Xingu a cada ano, como eles acham que vão fazer isso? Secando todos os rios, igarapés, poços e águas subterrâneas da região? Claramente Belo Sun não é viável. Esperamos que o governo, o Incra, o Ibama, entendam isso logo, anulem de vez esse projeto e comecem a atender as pessoas que realmente precisam de investimentos e políticas públicas”, conclui Claudio Teixeira.