Do MPF – Os indígenas Munduruku concluíram o documento que estabelece como o governo brasileiro deverá consultá-los sobre o projeto da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, no oeste do Pará, e sobre qualquer tipo de obra que impacte suas vidas e seus territórios. Entre várias determinações, o Protocolo de Consulta define que os Munduruku não aceitarão a presença de homens armados durante a consulta e não aceitarão ser removidos de seus territórios.
O documento aprovado vinha sendo discutido desde setembro em oficinas nas aldeias Waro Apompu e Praia do Mangue. A elaboração do protocolo contou com a assessoria do Ministério Público Federal (MPF) e do Projeto Convenção 169.
Decisões – Os Munduruku decidiram que a consulta prévia, livre e informada a eles que o governo federal está obrigado a fazer só ocorrerá depois do avanço no procedimento de demarcação da Terra Iindígena Sawré Muybu (também localizada no oeste paraense), com a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação que delimita a área de ocupação tradicional Munduruku.
Para os Munduruku, a realização da demarcação é uma prova necessária de que o governo respeita os direitos indígenas e portanto está qualificado para consultá-los sobre uma megaobra que pode afetar radicalmente as opções de sobrevivência física e cultural dos índios.
No protocolo, os Munduruku exigem que o governo cumpra os deveres de proteger os indígenas isolados e de garantir a realização de consultas a outros povos indígenas e a ribeirinhos ameaçados pela hidrelétrica.
Direitos – O MPF foi convidado pelos Munduruku a participar da assembleia para dar explicações sobre direitos indígenas e repassar informações sobre processos judiciais de interesse das comunidades representadas no evento.
O procurador da República Camões Boaventura enfatizou que, para ser considerada livre, uma consulta aos indígenas não pode ser feita atrelada à promessa de cumprimento de atendimento a direitos, como a construção de escolas ou postos de saúde. “Se isso ocorre, a consulta é ilegal. Direitos não são favores. São conquistas. E devem ser concretizados independentemente de barragem. Incluir no processo dialógico de consulta, momento indispensável na aferição de viabilidade do empreendimento, oferta de supostas compensações é viciar o diálogo de muita má-fé”, destacou.
Boaventura também ressaltou que, para ser considerada prévia, a consulta deve ser feita antes da tomada de qualquer decisão sobre a realização de um projeto. E, para o atendimento do quesito informada, a consulta não precisa necessariamente conter apenas informações geradas pelo governo, sendo válido o emprego de dados gerados, por exemplo, por institutos de pesquisas não governamentais e sobretudo por conhecimentos tradicionais associados das comunidades eventualmente impactadas.
Voz própria – O procurador da República observou que, mesmo contanto com o MPF como defensor de seus direitos, os indígenas podem requisitar audiências aos poderes executivo e judiciário para que o diálogo com esses poderes e a reivindicação por direitos possam ser feitos pessoalmente pelos índios.
Além de explicar os principais direitos indígenas previstos na Constituição Federal de 1988 e na Convenção 169 da OIT, o representante do MPF explicou aos indígenas, de forma didática e interativa, como se estrutura o sistema judiciário brasileiro e como as demandas judiciais percorrem todas as instâncias.
Uma das lideranças Munduruku, Fabiano Bõnõ, da aldeia Caroçal do Rio Cururu, fez um convite aos demais caciques. Segundo ele, uma opção para evitar que os direitos dos índios sejam violados é que algumas lideranças aprendam a ler a escrita dos pariwat (não índios). “Agradeço muito aos educadores das aldeias por abrirem nossos olhos”, disse.
Apoio – A assembleia Munduruku também contou com a presença do presidente da associação das famílias ribeirinhas e extrativistas da comunidade de Montanha e Mangabal, Ageu Lobo Pereira. Segundo ele, os ribeirinhos estão aprendendo com os indígenas sobre como deve se dar o processo de consulta prévia e vice-versa. “Os ribeirinhos também têm uma relação fortíssima com a terra, até porque muitos de nós somos filhos de pariwat com índios.”
O presidente da associação ressaltou que a falta da caça e da pesca na região seria a morte não só dos indígenas, mas também dos ribeirinhos. “Sem sombra de dúvidas”, enfatizou. Para ele, o modo como o governo federal vem tratando os povos tradicionais das margens do Tapajós é “o maior absurdo que pode existir”.
Outras demandas – Os Munduruku aproveitaram a presença do MPF na assembleia para entregar ao representante da instituição diversas demandas relativas à precariedade na educação escolar indígena prestada nas aldeias.
O que dizem os Munduruku:
Liderança Munduruku Agenor Kirixi:
● “Para nós não há limite entre o que é sagrado e o que não é sagrado. Tudo é sagrado.”
● “Só por existirem espécies vivas na área impactada pela hidrelétrica dá pra entender que a obra é inviável.”
● “Somos ricos, não em dinheiro, em reais, mas ricos por causa dos nossos recursos naturais.”
● “ A hidrelétrica mata o rio e animais. Nós morremos juntos.”
Liderança Munduruku Juarez Saw:
● “É inviável discutir com o governo antes da demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu”
● “Não estamos nos negando a participar da consulta, mas queremos uma prova de que o governo está agindo de boa-fé”.
● “Não tenham dúvidas de que a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós não virá sozinha. Com ela virão ferrovias, estradas, mineradoras…”
● “Nós estamos lutando firme e forte, porque a luta é em favor das próximas gerações dos Munduruku.”
Liderança Muduruku professor Hans Kaba:
● “Muitas vezes nós indígenas somos chamados de incomodadores. Mas o que nós somos é cobradores, cobradores do que diz a Constituição. Incomodadores são os que violam os direitos indígenas no Congresso.”
● “O governo não quer entender os problemas dos índios.”
● “Nós vamos brigar pela nossa vida até quando Deus permitir.”
● “Dói em nossa alma quando destroem a Amazônia.”
● “Os Mundurukus são tão ligados ao meio ambiente, ao seu território, que até no nosso nome fazemos referência à natureza. Nossos sobrenomes fazem referência a aves, peixes e outros animais. Nosso nome é composto por um nome Munduruku, um nome da natureza e o nome da etnia.”
● “Sem nossa terra, para nossa reprodução, não somos mais nada.”
Liderança Munduruku João Tomé Akay:
● “Jamais vamos nos entregar.”
● “Ignoramos qual é o conhecimento do governo no que diz respeito à nossa terra.”
● “Na cidade nós não somos nada. Lá temos que pagar para enterrar nossos parentes.”
● “Deus que fez o rio Tapajós, a água, e deixou o rio pra gente. Deus deixou o rio não para mexermos nele, mas para vivermos.”
Liderança Munduruku Dionísio Krixi:
● “Nós não viemos de longe, como os brancos. Nós sempre fomos daqui, somos daqui, sempre nos mantivemos aqui.”
● “O governo vem sussurrando nos nossos ouvidos, tentando dividir a gente. Não somos divididos. Somos um povo só.
Liderança Munduruku Osmar Turu:
● “Facilidades e favores são coisas passageiras. O que gera frutos permanentes nós já temos, que é a terra.”
● “Essa hidrelétrica não tem nenhuma viabilidade, e a gente sabe disso.”
Liderança Munduruku Ademir Kaba:
● “Os animais e as plantas são Munduruku, foram os Munduruku que se transformaram nos animais e plantas que existem. Foi o Deus Munduruku, o Karosakaybu, que fez o rio.”
Fotos e vídeos da assembleia:
http://bit.ly/fotos_videos_assembleia_munduruku_dez_2014
Áudio do Procotolo de Consulta na língua Munduruku:
http://bit.ly/protocolo_consulta_munduruku_em_munduruku
Protocolo de Consulta Munduruku
Elaborada pelos Munduruku reunidos na aldeia Waro Apompu, Terra Indígena Munduruku, em 24 e 25 de setembro de 2014, e na aldeia Praia do Mangue, em 29 e 30 de setembro de 2014. Este documento foi aprovado em Assembleia Extraordinária do povo Munduruku na aldeia Sai Cinza, em 13 e 14 de dezembro de 2014.
Nós, o povo Munduruku, queremos ouvir o que o governo tem para nos falar. Mas não queremos informação inventada. Para o povo Munduruku poder decidir, precisamos saber o que vai acontecer na realidade. E o governo precisa nos ouvir. Antes de iniciar a consulta, exigimos a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. Sabemos que o relatório está pronto. Temos vídeo da Presidência da Funai admitindo que a demarcação não ocorre por conta da hidrelétrica. O governo não está agindo com a boa fé que exige a consulta (Convenção n. 169, artigo 6°). Jamais aceitaremos ser removidos. E sabemos que a Constituição está ao nosso favor! Exigimos também que o governo proteja os parentes isolados que vivem em nossa terra e garanta o direito de consulta dos outros povos atingidos por seus projetos, como os Apiaká e os Kayabi. E, finalmente, exigimos que as comunidades ribeirinhas que serão atingidas pelas barragens no rio Tapajós (como Montanha e Mangabal, Pimental e São Luiz) tenham seu direito à consulta garantido, de modo adequado e específico à realidade delas. Assim como nós, os ribeirinhos também têm direito a uma consulta própria.
Quem deve ser consultado?
Os Munduruku de todas as aldeias – do Alto, Médio e Baixo Tapajós – devem ser consultados, inclusive daquelas localizadas em terras indígenas ainda não demarcadas. Nós não queremos que o governo nos considere divididos: existe só um povo Munduruku. Devem ser consultados os sábios antigos, os pajés, os senhores que sabem contar história, que sabem medicinas tradicionais, raiz, folha, aqueles senhores que sabem os lugares sagrados.
Os caciques (capitães), guerreiros, guerreiras e as lideranças também devem ser consultados. São os caciques que se articulam e passam informações para todas as aldeias. São eles que reúnem todo mundo para discutirmos o que vamos fazer. Os guerreiros e guerreiras ajudam o cacique, andam com ele e protegem o nosso território. As lideranças são os professores e os agentes de saúde, que trabalham com toda a comunidade.
Também devem ser consultadas as mulheres, para dividirem sua experiência e suas informações. Há mulheres que são pajés, parteiras e artesãs. Elas cuidam da roça, dão ideias, preparam a comida, fazem remédios caseiros e têm muitos conhecimentos tradicionais.
Os estudantes universitários, pedagogos Munduruku, estudantes do Ibaorebu, os jovens e crianças também devem ser consultados, pois eles são a geração do futuro. Muitos jovens têm acesso aos meios de comunicação, leem jornal, acessam internet, falam português, sabem a realidade e têm participação ativa na luta do nosso povo.
As nossas organizações (Conselho Indígena Munduruku Pusuru Kat Alto Tapajós – Cimpukat, Da’uk, Ipereg Ayu, Kerepo, Pahyhyp, Pusuru e Wixaxima) também devem participar, mas jamais podem ser consultadas sozinhas. Os vereadores Munduruku também não respondem pelo nosso povo. As decisões do povo Munduruku são coletivas.
Hoje, nós habitamos cerca de 130 aldeias, no Alto, Médio e Baixo Tapajós. Mas lembramos que, por causa da organização social do nosso povo, novas aldeias podem surgir.
Como deve ser o processo de consulta?
O governo não pode nos consultar apenas quando já tiver tomado uma decisão. A consulta deve ser antes de tudo. Todas as reuniões devem ser em nosso território – na aldeia que nós escolhermos -, e não na cidade, nem mesmo em Jacareacanga ou Itaituba. As reuniões não podem ser realizadas em datas que atrapalhem as atividades da comunidade (por exemplo, no tempo da roça, na broca e no plantio; no tempo da extração da castanha; no tempo da farinha; nas nossas festas; no Dia do Índio).
Quando o governo federal vier fazer consulta na nossa aldeia, eles não devem chegar à pista de pouso, passar um dia e voltar. Eles têm que passar com paciência com a gente. Eles têm que viver com a gente, comer o que a gente come. Eles têm que ouvir a nossa conversa. O governo não precisa ter medo de nós. Se ele quer propor algo que vai afetar nossas vidas, que ele venha até à nossa casa. Não aceitaremos dialogar com assessores, queremos ser consultados por quem tem o poder de decisão.
As reuniões devem ser na língua Munduruku e nós escolheremos quem serão os tradutores. Nessas reuniões, nossos saberes devem ser levados em consideração, no mesmo nível que o conhecimento dos pariwat (não índios). Porque nós é que sabemos dos rios, da floresta, dos peixes e da terra. Nós é que coordenaremos as reuniões, não o governo. Devem participar das reuniões os parceiros do nosso povo: o Ministério Público Federal, as organizações escolhidas por nós e nossos convidados especiais, inclusive técnicos de nossa confiança, que serão indicados por nós. Os custos da nossa presença e dos nossos parceiros em todas as reuniões devem ser pagos pelo governo.
Para que a consulta seja realmente livre, não aceitaremos pariwat armados nas reuniões (Polícia Militar, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Exército, Força Nacional de Segurança Pública, Agência Brasileira de Inteligência ou qualquer outra força de segurança pública ou privada). Nós usamos arco e flecha porque faz parte da nossa identidade e não diretamente para guerrear.
Para nossa segurança, as reuniões devem ser filmadas por nosso povo. Parceiros e agentes do governo por nós autorizados podem filmar e fotografar, desde que nos entreguem cópias integrais (sem edição) logo após o fim da reunião. Nossos locais sagrados não podem ser filmados nem fotografados. Não aceitaremos a divulgação ou uso indevido de nossa imagem.
As reuniões sobre as quais falamos até agora, dividem-se em:
– Reunião para fazer acordo sobre o plano de consulta: O governo deve ser reunir com o povo Munduruku para chegarmos a um acordo sobre o plano de consulta. O plano de consulta deve respeitar este documento, que diz como nos organizamos e tomamos nossas decisões.
– Reunião informativa: O governo deve se reunir com nosso povo, de aldeia em aldeia, para informar seus planos e tirar nossas dúvidas. Além de nós, devem participar dessa reunião os parceiros do nosso povo.
– Reuniões internas: Depois dessa reunião, precisaremos de tempo para discutir, entre nós, a proposta do governo. Precisaremos de tempo para explicar a proposta aos parentes que não puderam participar das reuniões informativas. Também queremos nos reunir com os ribeirinhos (por exemplo, de Montanha e Mangabal), para discutirmos. Podemos convidar nossos parceiros para as nossas reuniões internas. Já o governo não pode estar presente. Se aparecerem mais dúvidas ou novas informações forem acrescentadas, o governo deverá fazer mais reuniões informativas, com a nossa participação e de nossos parceiros. Depois disso, poderemos fazer outras reuniões com nossos parceiros, sem o governo, para tirar outras dúvidas e discutir – quantas reuniões forem necessárias para o povo Munduruku informar-se completamente.
– Reunião de negociação: Quando nós tivermos informações suficientes e tivermos discutido com todo nosso povo, quando nós tivermos uma resposta para dar ao governo, o governo deve se reunir com nosso povo, em nosso território. Nesta reunião, devem participar também os nossos parceiros. O governo deve ouvir e responder a nossa proposta, mesmo que ela for diferente da proposta do governo. E lembramos: não aceitamos que o governo use direitos que já temos – e que ele não cumpre – para nos chantagear.
Como nós, Munduruku, tomamos nossas decisões?
Quando um projeto afeta todos nós, a nossa decisão é coletiva. O governo não pode consultar apenas uma parte do povo Munduruku (não pode, por exemplo, consultar só os Munduruku do Médio Tapajós ou só os do Alto). O governo vem sussurrando nos nossos ouvidos, tentando dividir a gente. Nenhuma associação Munduruku decide só, nenhuma associação responde pelo nosso povo. As decisões do nosso povo são tomadas em assembleia geral, convocada por nossos caciques. São os nossos caciques, reunidos, que definem a data e o local da assembleia geral e convidam os Munduruku para participar dela.
Nas assembleias, as nossas decisões são feitas depois de discussão: nós discutimos e chegamos a um consenso. Se for preciso, discutimos muito. Nós não fazemos votação. Se não houver consenso, é a maioria que decide.
O que o povo Munduruku espera da consulta?
Nós esperamos que o governo respeite a nossa decisão. Nós temos o poder de veto. Sawe!
* A construção deste documento foi assessorada pelo projeto “Consulta prévia, livre e informada: um direito dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia “, e pelo Ministério Público Federal.