Ibama contraria ministério e mantém decisão de determinar que Belo Monte libere água no rio Xingu

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André Borges, O Estado de S.Paulo – Pressionado de todos os lados pelo governo, o Ibama decidiu levar adiante a sua decisão técnica e determinou que a concessionária Norte Energia, dona de Belo Monte, execute a liberação máxima de vazão de água para o rio Xingu, entre os dias 1 e 7 de fevereiro.

Com a decisão, a empresa será obrigada a liberar, a partir de segunda-feira e durante uma semana, 10.900 metros cúbicos de água por segundo, conforme prevê o cronograma provisório estabelecido pelo Ibama. A Norte Energia e o Ministério de Minas e Energia (MME), que acionou toda a cúpula do governo para derrubar a decisão do órgão ambiental, queriam que essa vazão se limitasse a 1.600 m³ por segundo.

O Ministério de Minas e Energia e membros do setor elétrico alegam que, ao liberar mais água para o rio, haverá uma redução no volume de energia que estava previsto pela casa de força principal de Belo Monte. Com essa frustração de geração, é preciso comprar essa energia de outras fontes, como usinas térmicas, que são mais caras e poluentes. O custo dessa aquisição, considerando apenas as vazões determinadas para janeiro e fevereiro, chegariam a cerca de R$ 1,3 bilhão, pelos cálculos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A fatura deve ser dividida entre todos os consumidores na conta de luz.

A reportagem apurou que a decisão já foi comunicada à concessionária e demais autoridades. No ofício emitido nesta tarde, ao qual o Estadão teve acesso, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, afirma que o tema continuará a ser discutido nos próximos dias.

“Registro que o Ibama está avaliando a necessidade de possíveis ajustes nas medidas de mitigação e compensação do empreendimento, considerando os elementos técnicos disponíveis no processo de licenciamento”, diz o presidente do Ibama, no documento. “As vazões a serem adotadas para os meses subsequentes do ano de 2021 serão objeto de deliberação por parte deste Instituto.”

Em situações normais, a vazão é decidida mensalmente, conforme cronograma prévio. A medida, portanto, é paliativa, enquanto não há uma decisão final.

A medida surpreende o próprio governo e representa uma derrota para a cúpula do setor elétrico, que passou os últimos meses tentando derrubar as definições técnicas do órgão ambiental. Como o Estadão informou nesta sexta-feira, 29, o governo colocou até o Ministério da Economia para alegar que qualquer mudança na partilha das águas do Rio Xingu realizada pela hidrelétrica de Belo Monte poderá comprometer a retomada do crescimento econômico do País. A pasta chega a afirmar que as mudanças poderiam, inclusive, impor riscos à ordem pública.

Em ofício que o Ministério da Economia encaminhou na quinta-feira, 28, ao Ibama, a pasta afirmou que, “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (MME), a manutenção pelo Ibama do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”, afirma.

A pasta comandada por Paulo Guedes afirmou ainda que “com imensa probabilidade, implicará perda de competitividade e produtividade das empresas brasileiras e perda de renda das famílias. Cabe destacar, ainda, a hipótese de incremento na percepção do risco regulatório no país, deteriorando ambiente de investimentos em infraestrutura nacional”.

Na quinta, o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), André Pepitone, disse que esperava uma decisão de “equilíbrio” sobre mudanças na quantidade de água que é liberada pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

Para André Pepitone, há “espaço para um meio termo” na decisão sobre liberação de água da hidrelétrica. Na quarta-feira, 27, a Aneel enviou um ofício ao Ibama, para comentar qual seria o custo financeiro para a tarifa do consumidor de energia, caso a Norte Energia siga as determinações do órgão ambiental em fevereiro, como já fez em janeiro. A reportagem teve acesso ao documento.

“Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a R$ 1,3 bilhão para o consumidor final de energia elétrica”, declara o diretor-geral da agência, no ofício. “Respeitando as competências próprias dessa autarquia ambiental, é importante ressaltar que a nova vazão imposta traz impactos significativos ao setor elétrico brasileiro.”

O valor refere-se a uma estimativa de custo para aquisição de energia térmica, com o objetivo de repor aquela que deixaria de ser gerada no período. Esse valor seria transferido ao consumidor de energia, por meio da conta de luz.

A definição sobre o volume de água obedece a uma programação mensal, que varia fortemente conforme a época do ano, por causa dos meses de cheia e de seca. Neste mês de janeiro, por exemplo, a Norte Energia queria liberar apenas 1.100 metros cúbicos de água por segundo para a Volta Grande, conforme previsto em seu próprio hidrograma. O Ibama, porém, determinou que a concessionária fizesse a liberação de 3.100 m³/s.

Para fevereiro, a empresa pretendia liberar apenas 1.600 m³/s, mas o Ibama cobrou que esse volume chegue a 10.900 metros cúbicos, quase sete vezes o pretendido pela concessionária. Diversos estudos técnicos já demonstraram que a retenção da água tem comprometido espécies de peixes, ameaçando a fauna local. Comunidades ribeirinhas e indígenas correm riscos de terem que deixar a região, porque dependem diretamente do rio para sobreviver.

A Norte Energia apresentou duas propostas anuais de vazão, que passariam a ser usadas de forma alternada, durante o prazo de seis anos, para se chegar a um ajuste, os chamados hidrogramas A e B. Acontece que o Ibama, após análises, concluiu que é “impraticável a implantação do Hidrograma A”, e que, em relação ao Hidrograma B, “os dados presentes no processo de licenciamento são insuficientes para garantir que não haverá piora drástica nas condições ambientais e de modo de vida na Volta Grande do Xingu no caso de sua implantação”.

Impacto na geração de energia

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) chegou a alertar que a maior parte da energia térmica do País já estaria contratada e que, sem a programação original de Belo Monte, teria que gerar mais energia de outras hidrelétricas, esvaziando mais seus reservatórios, o que poderia deixar a segurança energética nacional em situação mais vulnerável. 

Os principais reservatórios do País estão em fase de recuperação nestes meses de chuva, mas sofreram com os índices baixos registrados em novembro e dezembro do ano passado, os dois piores meses dos últimos 90 anos em registros de chuvas.

Acontece que, do lado ambiental, a situação dramática que seria causada ao rio Xingu não é nenhuma surpresa. Em novembro de 2015, a Norte Energia fechou a barragem principal da usina, desviando uma média de até 80% da água para um canal artificial de mais de 20 quilômetros, onde foram instaladas as grandes turbinas da hidrelétrica. Com esse desvio, um trajeto de 130 km, que há milhares de anos convivia com um regime natural de seca e cheia, passou a ser submetido a um regime extremamente reduzido de água, o que tem acabado com dezenas de espécies de peixes, tartarugas e frutos, comprometendo a vida do rio e a subsistência de milhares de famílias espalhadas em 25 vilas do trajeto do rio, entre indígenas e não indígenas.

O controle sobre a quantidade de água que passa ou não pela barragem é feito pela Norte Energia, por meio de um “hidrograma de consenso”, que prevê os volumes que devem ser liberados. Ocorre que esse documento técnico foi elaborado pela própria empresa, quando do seu licenciamento, em 2009. À época, relatórios do Ibama já chamavam a atenção para o fato de que os volumes previstos no hidrograma trariam riscos à região. Esses pareceres, porém, foram ignorados e o empreendimento recebeu autorização para ser construído.

Hoje, dez anos após a licença que autoriza as obras de Belo Monte, a situação se confirma. A Norte Energia alega que o trecho ainda passa por uma fase de “testes” e que isso deve ser analisado pelo prazo de seis anos, como previsto no edital da usina. O mesmo edital prevê, porém, que o Ibama pode alterar as regras de vazão do rio, conforme identifique situações que julgue necessárias.

No ano passado, após uma vistoria local realizada por diversos órgãos públicos e especialistas, foi confirmado pelo Ibama que “não está demonstrada a garantia da reprodução da vida, com riscos aos ecossistemas e à sobrevivência das populações residentes”, por causa da pouca água no trecho.       

Com a construção da usina, a empresa adotou duas regras: liberar 4 mil metros cúbicos (m³) por segundo em um ano e 8 mil m³ no ano seguinte. Esse regime artificial, porém, acabou por comprometer completamente a vida no trecho bloqueado do rio. Ao analisar os resultados, a equipe técnica do Ibama concluiu que o cenário com 4 mil m³/s “é impraticável”. Sobre o cenário com 8 mil m³, declarou que os dados “são insuficientes para garantir que não haverá piora drástica nas condições ambientais e de modo de vida na Volta Grande do Xingu”.

Neste segundo semestre, o Ibama apresentou um “hidrograma provisório”, exigindo maior liberação de água de Belo Monte. A Norte Energia, porém, entrou com ação contra essa decisão, sob alegação de que o órgão mudava as regras do licenciamento no meio do processo e que agia assim por “pressão” do Ministério Público Federal. O caso foi parar no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), que negou o pedido da concessionária contra o Ibama.

Como mostrou reportagem do Estadão, há mais de dez anos, Ibama, Fundação Nacional do Índio (Funai), universidades públicas e o Ministério Público Federal alertam para a situação de tragédia ambiental que poderia ser imposta aos 130 quilômetros de corredeiras, cachoeiras, ilhas, canais, pedrais e florestas aluviais que formam a Volta Grande do Xingu. Hoje, o MPF chama a atenção para “evidências científicas de que um ‘ecocídio’ fulminará um dos ecossistemas da Amazônia de maior biodiversidade”.

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