Data: outubro de 2010
Veículo: Revista Caros Amigos (especial Genocídio e Resistência dos Índios do Brasil)
Autora: Christiane Peres
A urgência pré-eleitoral fez o governo tirar do papel a maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC): a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, (PA). O leilão aconteceu em abril a fórceps, depois de uma “guerra de liminares”. Exatamente um dia após o Dia do Índio. O polêmico megaprojeto trouxe ao presidente Lula uma acusação impensável anos atrás, nos tempos em que o PT reunia boa parte da vanguarda da militância socioambientalista no país. “Lula tem demonstrado ser o inimigo número 1 dos índios”, atacou o cacique Megaron Txukarramãe, liderança de um dos povos indígenas mais conhecidos internacionalmente, os Kayapó.
O presidente não demonstrou dar qualquer importância aos críticos. Chegou a dizer que construiria a usina de qualquer jeito e, desde então, todas as suas ações demonstram que ele não estava brincando. Para os índios, “quando Lula fala isso, mostra que pouco está se importando com o que os povos indígenas falam”, afirmaram 62 lideranças indígenas de 16 aldeias da região de Altamira (PA), em carta divulgada à imprensa. Passados mais de quatro meses do leilão da obra, o tom das críticas e das ameaças vão além da desilusão com o presidente mais popular que o Brasil já teve. O momento agora é de resistência e luta. “O governo só mente. Não há diálogo, agora temos de partir para a luta física”, esbravejou a liderança indígena Sheyla Juruna, durante o Acampamento Terra Livre Amazônico. O encontro reuniu em agosto 36 povos indígenas, além de ribeirinhos, pesquisadores e movimentos sociais, em Altamira.
Ao contrário do que brada o governo, não foram apenas os índios, as ONGs internacionais e os diretores de Hollywood que apontaram equívocos evidentes e pontos absolutamente inconfiáveis nos planos da obra. Poucas vezes um projeto do governo Lula despertou tamanha oposição entre engenheiros, por exemplo, vários deles professores nas mais importantes universidades brasileiras. E para entender a polêmica que envolve Belo Monte, é preciso voltar na origem do projeto.
De Kararaô a Belo Monte
Pouco mais de 30 anos atrás, começavam as discussões sobre aquele que viria a ser o projeto de construção da usina Kararaô – antigo nome de Belo Monte. A proposta elaborada durante a ditadura militar consistia na construção de seis barragens no rio Xingu, num dos maiores complexos hidrelétricos do mundo. Nos anos 1980, a proposta veio a público e foi duramente questionada pelos indígenas e seus apoiadores. Ficou para a posteridade a foto de 1989 em que a índia kayapó Tuíra ameaçava com um facão o engenheiro José Antonio Muniz, durante o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, realizado em Altamira. Qualquer impressão de continuidade no projeto não é mera coincidência: conterrâneo e apadrinhado do senador José Sarney (PMDB-AP), Muniz é hoje o presidente da estatal Eletrobras.
Secura
Kararaô foi arquivada nos moldes iniciais. Belo Monte a substituiu com alterações que, segundo o governo, reduzem os impactos ambientais. A área de inundação foi reduzida de 1.225 para 516 quilômetros quadrados. Mas, aqui, está a primeira crítica ao projeto. De fato, o projeto não terá alagamento em terra indígena, mas a “solução” encontrada cria outro impacto – pelo traçado de Belo Monte, um trecho de 100 quilômetros de curva do rio, conhecido como Volta Grande, terá sua vazão reduzida. “O rio Xingu, base da vida dessas populações, vai viver um processo de ressecamento constante. No verão, o rio abaixa muito e, com essa obra, a Volta Grande vai viver um verão eterno. Então, vai impedir navegabilidade, inviabilizar pesca. Um desastre para as comunidades”, alerta Renata Pinheiro, bióloga que assessora o Movimento Xingu Vivo para Sempre. O desvio do curso do rio atingirá pelo menos três terras indígenas: Paquiçamba e Boa Vista, do povo Juruna, e Volta Grande, do povo Arara, além das dezenas de vilas de ribeirinhos. “Belo Monte não alagará terra indígena, mas gerará comprometimento aos modos de vida e à biodiversidade da região, porque diminui a oferta de água na Volta Grande”, explica o pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo Francisco Hernandez. “Quanto à segurança hídrica, é um projeto equivocado. A natureza vai ser drasticamente alterada. Não há compensação que resolva isso.” Hernandez coordenou um painel de 40 especialistas para fazer uma análise independente sobre Belo Monte. O documento, intitulado Análise crítica do estudo de impacto ambiental do aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte, surgiu em 2009, a pedido de movimentos sociais e ONGs, e aponta uma série de falhas, omissões e lacunas existentes no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado ao Ibama.
Energia
O segundo problema é o potencial energético da obra. A usina foi anunciada como a terceira maior do mundo em potencial de geração de energia, com 11 mil megawatts, mas isso só é verdade durante uma pequena parte do ano. Na maioria dos meses, a energia produzida equivale à de uma hidrelétrica bem menor, como a de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, com geração aproximada de 4,5 mil megawatts. Considerada pelo governo como a terceira maior do mundo e a “salvação do país” em geração de energia, Belo Monte terá, na prática, uma produção bem aquém do prometido, segundo os especialistas. “Existe uma diferença entre potência instalada e energia efetivamente gerada”, diz Hernandez. Para driblar esse “desperdício”, a solução seria construir outras barragens, o que significa retornar ao projeto original de Kararaô – que previa seis barramentos no rio Xingu. O governo nega de pés juntos que isso será feito, apoiando-se na determinação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que definiu em 2008 que Belo Monte seria o “único potencial hidrelétrico explorado no rio Xingu”. A maior desconfiança dos movimentos sociais, contudo, é que o governo estaria escondendo sua intenção de lidar, daqui a alguns anos, com a tática do fato consumado. Ou seja, quando a usina gigante já estiver construída, precisará ser otimizada. “Isso significa que você faz o licenciamento apenas para uma usina e, no final, constrói as outras barragens. Era o plano tão combatido nos anos 70 e 80”, acusa Renata Pinheiro. De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), Belo Monte vai operar a fio d’água, isto é, em vez de se construir um mega reservatório, a usina vai gerar energia de acordo com a quantidade de água no rio, variando ao longo do ano. Como a usina será interligada ao restante do sistema, o relatório descreve: “Quando Belo Monte estiver gerando bastante energia (na cheia), vai ser possível guardar água nos reservatórios das usinas em outras regiões do Brasil. Com os reservatórios cheios, essas usinas vão gerar mais energia quando Belo Monte estiver gerando pouca energia (na seca). Não será necessário construir outras usinas no rio Xingu”, registra o texto. O temor da construção de novos barramentos, contudo, é mantido pelos povos indígenas. “Nós sabemos que Belo Monte sozinha não dará conta de produzir toda a energia que o governo espera e sabemos que será necessária a construção de mais usinas”, afirma Marcos Apurinã, dirigente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Custo
O terceiro questionamento recai sobre o dinheiro do contribuinte. A obra foi orçada em R$ 19 bilhões. Até 80% desse valor poderá ser financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O consórcio Norte Energia – vencedor do leilão e formado originalmente por Queiroz Galvão, Chesf e outras sete empresas – ainda terá desconto de 75% no Imposto de Renda por dez anos. Nove novas empresas entraram no consórcio, inclusive a empreiteira Andrade Gutierrez, que estava entre os derrotados do leilão de abril. Os investidores terão prazo de 30 anos para quitar o empréstimo concedido a juros decrescentes. Contudo, os concorrentes já estimam um aumento de R$ 11 bilhões no custo da obra, uma vez que seus valores atuais não consideram dificuldades da construção. “Ninguém pode afirmar a viabilidade de algo que até hoje não se tem a menor certeza do custo total do investimento”, alerta Oswaldo Sevá, engenheiro da Universidade Estadual de Campinas e estudioso do projeto de Belo Monte há 22 anos. O aumento nos custos da obra forçaria uma maior entrada de recursos públicos no projeto. O governo nega que isso vá acontecer. Mas ele já detém a maioria do capital total da obra. Eletrobras, Chesf e Eletronorte ficaram com 49,98%. Com as alterações no consórcio vencedor, a participação das construtoras, que era de 40%, caiu para 12,5%. A diferença foi preenchida com a entrada dos fundos de pensão: Funcef, dos funcionários da Caixa Econômica Federal; Petros, dos funcionários da Petrobras; e Previ, dos funcionários do Banco do Brasil; e um fundo constituído por recursos do FGTS. Todos controlados pelo governo. “Essa é uma das maiores roubalheiras da história, que pode fazer com que os fundos de pensão e o próprio BNDES quebrem”, recrimina Sevá. Outro ponto questionável do discurso a favor de Belo Monte é a geração de empregos que a obra trará à região. Segundo o governo, 18 mil empregos diretos serão gerados por Belo Monte, além de aproximadamente 23 mil indiretos. O que não se diz é que o benefício é temporário e, ao final de dez anos, menos de 4% dos trabalhadores estarão empregados. “O que isso vai gerar? Violência na região. Com essa massa sem ocupação vai aumentar desmatamento, extração ilegal de madeira, invasão de áreas protegidas”, alerta Renata Pinheiro.
Direitos
Toda discussão técnica é agravada pela negligência com o direito das populações tradicionais da região a serem consultadas sobre o projeto, conforme a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que já foi ratificada pelo Brasil. A Funai alega que as consultas foram realizadas. Mas não é o que têm declarado diversas lideranças indígenas. Para piorar, em setembro de 2009, a fundação também emitiu um parecer favorável à obra, desconsiderando os protestos dos índios. O órgão alega que os impactos apontados serão superados por programas de mitigação e compensação. Na carta redigida por 62 lideranças, os índios reforçam sua desaprovação. Em tom de desabafo, a carta traz a frustração diante de atropelos e desrespeitos: “Nosso açougue é o mato, nosso mercado é o rio. Não aceitamos a hidrelétrica de Belo Monte, pois entendemos que só vai trazer mais destruição”. Pequenos agricultores, ribeirinhos, pescadores e extrativistas que habitam as margens do rio Xingu também reclamam que não participaram das discussões do projeto e nem sequer sabem o que irá acontecer. “Tenho encontrado um clima social de insegurança e apreensão”, diz a antropóloga Sônia Magalhães, da Universidade Federal do Pará. O governo mostra que manterá a ofensiva. Se tudo correr conforme o previsto, as obras devem ter início ainda no segundo semestre deste ano. Um projeto de interesse “da nação” não pode ser impedido por uma “minoria”, reafirmam os agentes públicos. A questão é: que interesse nacional é esse? Dá o que pensar uma entrevista ao Correio da Cidadania, do engenheiro Ildo Sauer, professor da USP que participou da equipe que auxiliou na construção do programa de governo de Lula para o setor, em 2002. Sauer ocupou a diretoria da Petrobras até 2007 e questiona a falta de providências do governo em relação a uma prometida revisão do modelo do setor elétrico. Diz ele sobre Belo Monte: “Havia muitos outros projetos que poderiam ser viabilizados ao longo do tempo e não foram. Também poderia se investir no aproveitamento maior da biomassa, da energia eólica, programas de uso racional de energia, que permitem reduzir os custos”. “Estava tudo na lista do que deveria ser feito na reforma do setor, mas não foi. Tudo foi varrido para debaixo do tapete em nome dos grandes interesses, das grandes empreiteiras e investidores privados, todos financiados com dinheiro público e pelo BNDES.” O resultado é que os consumidores brasileiros continuam pagando uma das maiores tarifas do mundo, ao mesmo tempo em que as empresas privadas que participam do sistema elétrico têm altos lucros, e o governo continua bancando os custos da construção de novas megaobras, sempre em regime de urgência, ameaçando os opositores de contrariarem o interesse “nacional”. Nos próximos anos, o governo federal planeja construir e inaugurar 58 usinas hidrelétricas com recursos do PAC. O problema é que uma usina como Belo Monte só sai mais barato que outras alternativas porque há um custo que fica oculto na obra. Para justificar a usina, o governo tem comparado o preço da hidroeletricidade com o da eólica. Segundo números apresentados, para se produzir em energia eólica o equivalente à capacidade média de Belo Monte, seriam necessários US$ 30 bilhões, enquanto a estimativa de custo da usina é R$ 19 bilhões. Uma bela economia, se o governo não deixasse de computar os danos que serão causados a milhares de brasileiros e à biodiversidade. Pelo jeito, quem vai pagar a maior parte da fatura de Belo Monte serão mesmo as comunidades tradicionais do Xingu, e não há a quem apelar. Uma pena, visto que a diversidade socioambiental na região do rio Xingu impressiona o Brasil e o mundo há décadas. Desde a nascente em Mato Grosso, até desaguar no rio Amazonas, o Xingu percorre 2,7 mil quilômetros, abrigando o que é considerado um dos maiores corredores de áreas protegidas do mundo: 19 terras indígenas e 10 unidades de conservação contíguas, num total de quase 28 milhões de hectares em plena Amazônia.
achei que faltou colocar fotos do local onde será construida a usina hidreletrica de belo monte, mas fora isso achei que esta tudo bem colocado. gostei do assunto.