
O Mutirão pela Cidadania, representante legal do Movimento Xingu Vivo para Sempre, foi aceito como Amicus Curiae pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no processo que questiona o acordo entre a mineradora canadense Belo Sun e o INCRA (Processo N° 044.869/2021-5), que cedeu 2.428 hectares de terras públicas – incluindo 21 lotes do assentamento PA Ressaca – para o maior projeto de exploração de ouro do país, na Volta Grande do Xingu, Pará.
No processo, o TCU aponta uma série de irregularidades cometidas pelo Incra no ato que passou, ainda no governo Bolsonaro, o direito de uso das terras para Belo Sun, e recomenda a anulação tanto do contrato quanto de uma Instrução Normativa (IN 112) que regulamenta a concessão de áreas de assentamentos para mineração e para projetos de energia e infraestrutura.
Ao ser aceito como Amicus Curiae – “amigo da corte”, em português –, o Movimento Xingu Vivo, através de sua representação Mutirão pela Cidadania, poderá encaminhar ao TCU informações adicionais, documentos ou provas que corroborem a tese do Tribunal. “É muito importante que a parte afetada possa participar desse processo. No caso, o Xingu Vivo está atuando diretamente com os agricultores vitimados tanto pelo acordo Incra/Belo Sun quanto pela violência da mineradora, que contratou homens armados para intimidar famílias no PA Ressaca. Agora podemos levar a voz destas vítimas para dentro do processo, uma vez que o INCRA claramente não demonstra interesse em defende-los”, explica Diogo Cabral, advogado do Movimento.
O INCRA contra a Reforma Agrária
Com a derrota de Bolsonaro nas últimas eleições, em março de 2023 o Movimento Xingu Vivo se reuniu na sede do INCRA, em Brasília, com funcionários do órgão e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para denunciar tanto o acordo com a mineradora quanto a IN 112, pedindo medidas urgentes para a proteção dos agricultores no assentamento PA Ressaca, a anulação do contrato e a revogação da Instrução Normativa. Na ocasião, a resposta foi muito positiva. Segundo os presentes, tanto o acordo quanto a IN 112 seriam inconstitucionais e poderiam ser anulados com “uma canetada”. Na época, inclusive, já estava tramitando na Justiça uma Ação Civil Pública (ACP) das Defensorias Públicas da União e do Estado do Pará contra o contrato, e corria no Tribunal de Contas da União a representação contra o INCRA com base em irregularidades do processo. Tudo apontava para uma solução favorável aos agricultores.
Com o passar do tempo, no entanto, o discurso do INCRA foi mudando. Já não se falava mais em revogar da IN 112 e sim numa remodelação da norma. E em relação ao contrato com a mineradora, argumentava-se que “a coisa não era tão simples”, uma vez que o órgão havia recebido, em troca de 21 lotes do assentamento no Pará, uma fazenda no Mato Grosso, carros e tablets, além da promessa de participação nos lucros da mineração. Nos bastidores, falava-se que a melhor solução seria uma decisão da Justiça favorável à ação das Defensorias Públicas, porque desta forma não seria o INCRA a quebrar um contrato. Ou então que a investigação do TCU levasse ao mesmo desfecho.
Enquanto isso, os conflitos aumentavam no território. Ainda em 2022, um grupo de agricultores sem-terra ocupou parte da área cedida pelo INCRA à Belo Sun como forma de protesto contra o acordo, demandando o direito a um pedaço de chão para viver e plantar. Havia se constituído, assim, um acampamento de sem-terra dentro de um assentamento de reforma agrária, com agricultores que foram inclusive cadastrados pelo INCRA com a promessa de que ainda em 2024 seriam regularizados no PA Ressaca. E estes agricultores passaram a ser sistematicamente atacados pela mineradora, tanto por meio de ações na justiça quanto por homens armados da empresa de segurança privada Invictus, contratada por Belo Sun.
Mas o ano de 2024 ia findando sem que nenhuma medida concreta para proteger o PA Ressaca e os agricultores ameaçados tivesse sido tomada. Até que, em 27 de novembro, o juiz federal de Altamira, Leonardo Araujo de Miranda Fernandes, anulou o acordo entre o Incra e a mineradora, julgando procedente a Ação Civil Pública das Defensorias Públicas.
Para os assentados, agricultores acampados e o Xingu Vivo, esta decisão gerou uma enorme sensação de alívio. O Movimento imediatamente pediu nova conversa com o INCRA para se certificar que finalmente o órgão, como havia sido prometido, abandonaria a parceria com a mineradora, atenderia as demandas dos acampados e investiria em melhoras no assentamento. Mas novamente o órgão silenciou.
Até que, no início de 2025, veio a notícia de que o INCRA se uniria à Belo Sun para recorrer da decisão da Justiça e defender a validade do contrato. “Temos que garantir os interesses da autarquia”, foi a resposta da Diretoria de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamento do INCRA aos questionamentos do Movimento Xingu Vivo. No recurso apresentado à Justiça, o órgão argumenta que o “Contrato de Concessão de Uso [com Belo Sun] está amparado em análises técnica e jurídica e foi referendado por deliberação colegiada do Conselho Diretor do INCRA (presidido pelo Presidente do Incra), com ampla representatividade institucional”.
Apesar dos vários sinais, ao longo dos últimos anos, de que o INCRA não estava preocupado com o PA Ressaca, a defesa do contrato firmado no governo Bolsonaro – e que, num primeiro momento, foi considerado inconstitucional por funcionários do atual governo – foi como um tapa na cara. “O que o INCRA subentende como ‘defender os interesses da autarquia’? São a fazenda no Mato Grasso e os tablets que ganharam da Belo Sun? Ou a participação nos lucros da mineradora? A gente achava que o interesse do INCRA era defender a política nacional de reforma agrária, era garantir a produção de alimentos, uma vida digna para as nossas famílias. Mas isso claramente não é o caso”, desabafa um dos agricultores acampados no PA Ressaca.
Processo no TCU
Na extensa representação do Tribunal de Contas da União contra o INCRA e o acordo com Belo Sun, constam elementos graves, como informações de que a área pretendida pela mineração em terras públicas é bem maior do que o que consta no contrato – e por isso a cessão teria que passar pelo crivo do Congresso Nacional, inclusive porque Belo Sun é uma empresa 99% estrangeira -; a presença de assentados nos lotes cedidos à mineradora; que o INCRA sabia da compra criminosa de lotes no PA Ressaca pela mineradora, nada fez a respeito e por fim cedeu estes mesmos lotes ao empreendimento; que o INCRA não realizou um levantamento da real situação dos lotes e das famílias diretamente afetados pela sobreposição da mineradora no PA Ressaca; que o INCRA se beneficiará economicamente com a mineração, portanto é sócio de Belo Sun, o que indica conflito de interesses, entre outros.
Em documento (NOTA INFORMATIVA Nº 526) enviado em fevereiro de 2025 à Coordenação Geral de Infraestrutura e Consolidação de Assentamentos sobre a diligencia do TCU, assinado por quatro funcionários do INCRA, o órgão adota uma postura evasiva. Por exemplo, em relação ao questionamento sobre o tamanho da área que Belo Sun quer ocupar em terras públicas, o INCRA diz apenas que ‘precisa averiguar’. Já sobre a presença de famílias de assentados em lotes cedidos à mineradora, denunciada pela DPU com comprovação fotográfica, o INCRA, que não realizou vistoria prévia no assentamento, argumenta que os agricultores teriam assinado a documentação da compra ilegal dos lotes pela mineradora e, por isso, estes em teoria estariam desocupados. Argumenta, por outro lado, que, apesar de “precipitada”, tal compra não teria gerado direitos de Belo Sun sobre os lotes. Sobre os benefícios financeiros que o INCRA terá com a mineração, que consubstanciariam conflito de interesse, o documento afirma apenas que “o pagamento da participação nos resultados ou rendas provenientes da atividade ou empreendimento ao Incra é legal”.
O Incra também nega que o acordo com Belo Sun vem gerando conflitos e insegurança no PA Ressaca, apesar das inúmeras denúncias e boletins de ocorrência acerca das ações violentas dos homens armados contratados pela mineradora – e que, em maio de 2024, motivaram inclusive uma missão da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência do Campo, constituída por mais de 11 Ministérios, ao local. “Os subescritores da presente manifestação contestam a afirmação de que o contrato n.º 1.224/2021 e da IN 112/2021 constituem fatores geradores de insegurança, tensões, conflitos e violências às comunidades e beneficiários da reforma agrária atingidos pelo empreendimento”, se limita a dizer o órgão, sem apresentar nenhum elemento que corrobore a afirmação.
Por fim, quando questionado pelo Movimento Xingu Vivo sobre o estudo dos impactos de Belo Sun no PA Ressaca, que deveria ter sido realizado pelo INCRA antes de qualquer acordo com Belo Sun, a Diretoria de Desenvolvimento afirmou apenas que “esse relatório a gente ainda não encontrou nem tecnicamente nem financeiramente o arranjo e a forma ideal para botar ele de pé”.
Nota – O Movimento Xingu Vivo para Sempre, como organização que há mais de quinze anos luta pelos direitos das comunidades da Volta Grande do Xingu impactadas por Belo Monte e ameaçadas por Belo Sun, lamenta profundamente a postura adotada pelo INCRA no processo de usurpação, pela mineração, de terras da Reforma Agrária. Nos últimos dois anos, o Movimento tem buscado incessantemente o diálogo com órgãos e Ministérios do Governo Federal, postura que manterá no intuito de defender os direitos humanos das populações mais vulneráveis da região, da segurança e soberania alimentares, da Reforma Agrária, do bem viver de povos e comunidades tradicionais, da Constituição e da Democracia. Nesse sentido, reforça a esperança de que estes preceitos sejam garantidos, se não pela institucionalidade do Poder Executivo, pelo Judiciário; tanto no procedimento que corre no TCU, quanto no julgamento da ACP das Defensorias Públicas da União e do Pará.